"Os meus livros (que não sabem que existo) São uma parte de mim, como este rosto De têmporas e olhos já cinzentos Que em vão vou procurando nos espelhos" Jorge Luis Borges
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
Desassossego (18)
"A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da minha alma. Eu não podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos meus pensamentos.
Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma criancinha que morreu sempre há muito tempo.
Amar-me é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém escreverá sobre mim um poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino."
Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Ana Teresa Pereira (8)
"- Quer dizer que o amor é a procura de uma imagem.
- Não sei - disse Tom - o que amamos quando amamos alguém.
Levantou-se, encostou-se à porta da varanda, ficou a olhar para fora. Parecia muito magra, quase frágil, no vestido cinzento.
Tom aproximou-se, tocou-lhe ao de leve no ombro nu, sem que ela reagisse.
Ele murmurou:
- Eu só quero alguém entre mim e o escuro. Entre mim e a noite."
Tiago Araújo (4)
"somos iguais em todas as metamorfoses, percorremos os mesmos lugares. a cidade cansou-nos gota a gota de um anestésico perfeito e não queremos partir. estamos suspensos numa teia tecida com cabos de aço que nos ligam a pessoas e edifícios. deslocamo-nos pela tensão de uns cabos sobre outros, num ritmo não natural, como o de uma marioneta que se cria a si própria. estamos sentados na cama, com a mala vazia dos objectos espalhados pelo quarto, a sensação de que não chegaremos a partir e de que já só podemos ser diferentes noutro lugar."
in Livre Arbítrio, Averno
in Livre Arbítrio, Averno
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Al Berto (12)
"sentado, à varanda do mundo, morro com todas as coisas que morrem. vivo com todas as coisas que vivem e já não sou eu que aqui estou. nem a sombra que perdi, nem o meu corpo é este que nasceu comigo. nada sei de mim permaneço sentado, não faço absolutamente nada, nem mesmo pensar, porque descobri o lugar onde o corpo se perdeu no tempo.
-
se me estiveres a ouvir se me pressentires no fundo dos teus olhos, ajuda-me a caminhar na tua direcção. não me dês espelhos, não me enganes, não demores a chamar-me."
in Diários, Assírio & Alvim
Manuel António Pina (2)
Depois
"Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e respostas.
Que coração, no entanto pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração a saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança
se recolhem também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas."
terça-feira, 27 de novembro de 2012
Every little tear
*à espera do novo álbum...
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
Ana Hatherly (4)
Príncipe
"Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me"
in Um Calculador de Improbabilidades, Quimera
domingo, 25 de novembro de 2012
Inês Dias e Diogo Vaz Pinto (3)
[Três]
"Não ficamos menos sozinhos; coincidimos na solidão. No seu núcleo. No escuro: tornamos-lhe a carne íntima, sem cantos, deixamo-lo fazer ninho dentro de nós. Pelo caminho abandona-se essa perfeição inacessível da gota que foge lentamente com a luz ao longo da garrafa, mas do lado de dentro do vidro. Aprendemos a esvaziar os bolsos até saírem todas as borboletas de asas lascadas, lançamos armadas de papel. E em vez de afogarmos a beleza que nasce destruída, damos-lhe casa, alimento, um nome para que a possamos chamar de volta em cada entardecer.
Acabaram-se as imagens, as palavras cedem a lentos rumores que nos entontecem. Da alma não esperamos mais que um encosto para horas destas em que nos falta melhor disposição. Corpos. Como dizer de outra forma a pose em que vimos extinguir-se o fogo? Não passamos de estátuas de cinza que o vento comove e dispersa. Jardins salivando, figuras num museu de alucinação. Há gestos que nos recordam, insistências que imploram ao olhar que se fixe nalgum detalhe. Faz-nos falta uma filosofia que ligue e adoce as nossas ideias, lhes dê um propósito qualquer. Divagas demais. Levas para todo o lado essa garrafa com restos de mau vinho, onde sopras e embalas o nome da empregada, esse segredo e um assobio que vem cavalgando brisas de toda a espécie. Coleccionas aí o teu eterno naufrágio. Não vais a lugar nenhum. Chamas a isto o teu país, e prefere-lo assim: deserto."
in Revista Cão Celeste nº2
"Não ficamos menos sozinhos; coincidimos na solidão. No seu núcleo. No escuro: tornamos-lhe a carne íntima, sem cantos, deixamo-lo fazer ninho dentro de nós. Pelo caminho abandona-se essa perfeição inacessível da gota que foge lentamente com a luz ao longo da garrafa, mas do lado de dentro do vidro. Aprendemos a esvaziar os bolsos até saírem todas as borboletas de asas lascadas, lançamos armadas de papel. E em vez de afogarmos a beleza que nasce destruída, damos-lhe casa, alimento, um nome para que a possamos chamar de volta em cada entardecer.
Acabaram-se as imagens, as palavras cedem a lentos rumores que nos entontecem. Da alma não esperamos mais que um encosto para horas destas em que nos falta melhor disposição. Corpos. Como dizer de outra forma a pose em que vimos extinguir-se o fogo? Não passamos de estátuas de cinza que o vento comove e dispersa. Jardins salivando, figuras num museu de alucinação. Há gestos que nos recordam, insistências que imploram ao olhar que se fixe nalgum detalhe. Faz-nos falta uma filosofia que ligue e adoce as nossas ideias, lhes dê um propósito qualquer. Divagas demais. Levas para todo o lado essa garrafa com restos de mau vinho, onde sopras e embalas o nome da empregada, esse segredo e um assobio que vem cavalgando brisas de toda a espécie. Coleccionas aí o teu eterno naufrágio. Não vais a lugar nenhum. Chamas a isto o teu país, e prefere-lo assim: deserto."
in Revista Cão Celeste nº2
Carlos Alberto Machado (6)
"A pele
sente-se demasiado a pele
a pele desdobrada em dois
duas peles que se desdobram
se encontram se afastam
se imaginam nas peles
dos outros
caminhando num lugar
que não há
sente-se demasiado a pele
nas palavras
nos gestos
desencontrados
metamorfoses
a de um homem inseguro
que não sabe até onde poderá ir
a da mulher que sabe
apenas que vai morrer
cada um com a sua pele
com a sua voz
a fazer coisas certas
venho da rua
e não vos reconheço
porquê ouvir as vossas vozes?
porquê dar-vos a minha atenção?"
in A Realidade Inclinada, Averno
sente-se demasiado a pele
a pele desdobrada em dois
duas peles que se desdobram
se encontram se afastam
se imaginam nas peles
dos outros
caminhando num lugar
que não há
sente-se demasiado a pele
nas palavras
nos gestos
desencontrados
metamorfoses
a de um homem inseguro
que não sabe até onde poderá ir
a da mulher que sabe
apenas que vai morrer
cada um com a sua pele
com a sua voz
a fazer coisas certas
venho da rua
e não vos reconheço
porquê ouvir as vossas vozes?
porquê dar-vos a minha atenção?"
in A Realidade Inclinada, Averno
sábado, 24 de novembro de 2012
Jorge Roque (9)
Banalidade da estupidez
"Mais do que a banalidade do mal, o que espanta na existência
humana é a banalidade da estupidez (esta última, aliás, explica
a primeira)."
Merda de ideia a nossa
"Tanto pouco onde nunca havemos de caber. Tanto pouco
que é a lei geral que não mudará. E nós a porfiar, porfiar,
não desistir de lutar, de crescer, para cada vez mais não caber,
não caber. Isto que é um perfeito absurdo. é a única razão
do nosso existir.
Merda de mundo pouco. Merda de fazedores de pouco, E já
agora, merda de ideia a nossa de teimar lutar contra o que
desde o começo sabíamos não poderíamos vencer."
Preciosa companheira
"A grande tragédia neste mundo é ultrapassar o limiar da
estupidez. No que respeita ao outro, a grande tragédia é
não o haver.
Apenas uma solução, já que voltar atrás é impossível: nascer
de novo vocacionado por natureza para ser estúpido. Esta
solução infelizmente não existe.
Olha-te nos olhos: tudo o que resta é a tua derrota. Cuida
bem dela, estima-a como preciosa companheira que é."
Armando Silva Carvalho
A Névoa do Nada
"Deu em cinzento o dia.
A cor da paciência amorosa sobre o corpo
e o mar confundido na névoa
tem a resposta abstracta nos sentidos.
Os sons são a metamorfose dos gemidos do mel,
esse manjar bíblico de núpcias decantadas,
e agridem na sua rigidez cinzenta
a audição passiva.
Os olhos no opaco,
o sabor no vento transtornado,
o olfacto húmido de salinosa angústia
o desflorar a pele,
o frio abraço da separação
da luz.
Uma lição sensual, arrastada pela bruma
que dos versos sempre soube ser
a mais fiel amante.
Altas as aves, recortam-se no céu,
indecifráveis, vãs.
É a vida temível que se ateia nas vozes
mais ocultas da melancolia.
O tempo adensa sem saber o nada,
o amor é o dia"
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Amadeu Baptista
Dois mil e quatro
"Ainda bem que sou um homem do norte.
Ainda bem que tenho um horror suculento
a parasitas pardos e viúvas negras.
Ainda bem que evoluo na travessia das nuvens,
e acredito
e aceito, ainda.
Ainda bem que num momento particular
estou em presença de um torso
e um cavalo a arder,
um sinal de vida sobre o campo visual.
Ainda bem que não mastigo bem,
não digiro bem
não dirijo bem,
e choro como uma criança.
Ainda bem que as formas circuncêntricas
se explanam como processos escultóricos
e a manhã deste outono anunciado
é primaveril.
Ainda bem que nas paisagens reais
não há seres indefesos
- não há seres indefensáveis
neste rede de hipóteses cruéis e sanguinárias.
Ainda bem que a irregularidade é a única lei
dos fora da lei
no outro lado da rua,
há uma curva,
depois um bosque,
depois uma depressão no terreno
que denominamos com contracções musculares,
sobreposição de imagens,
Deus, na aula de trabalhos manuais.
Ainda bem que, após a fuga
há uma casa na árvore para retemperar as forças.
Ainda bem que sou um homem de sorte."
in Açougue, & etc
"Ainda bem que sou um homem do norte.
Ainda bem que tenho um horror suculento
a parasitas pardos e viúvas negras.
Ainda bem que evoluo na travessia das nuvens,
e acredito
e aceito, ainda.
Ainda bem que num momento particular
estou em presença de um torso
e um cavalo a arder,
um sinal de vida sobre o campo visual.
Ainda bem que não mastigo bem,
não digiro bem
não dirijo bem,
e choro como uma criança.
Ainda bem que as formas circuncêntricas
se explanam como processos escultóricos
e a manhã deste outono anunciado
é primaveril.
Ainda bem que nas paisagens reais
não há seres indefesos
- não há seres indefensáveis
neste rede de hipóteses cruéis e sanguinárias.
Ainda bem que a irregularidade é a única lei
dos fora da lei
no outro lado da rua,
há uma curva,
depois um bosque,
depois uma depressão no terreno
que denominamos com contracções musculares,
sobreposição de imagens,
Deus, na aula de trabalhos manuais.
Ainda bem que, após a fuga
há uma casa na árvore para retemperar as forças.
Ainda bem que sou um homem de sorte."
in Açougue, & etc
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (27)
Por favor...
Cliente: Tem o livro daquele actor... o Dano? Ele tem um livro que é igual a uma música portuguesa!
Eu: (e novamente o meu dia começa em grande) Lamento, mas de facto não estou a perceber o que deseja...
Cliente: É igual aquela música: "Já fui ao Brasil, Praia e Bissau..." (sim, o cliente cantou) É os "Vinchi"... e depois sei que é qualquer coisa de um código...
Eu: (de facto, como é possível, podias escrever um guião de um filme para o Lynch) Está a falar do Dan Brown, o escritor? O livro é O Código Da Vinci!
Com tantos livreiros, porque é que me procuram a mim?
Cliente: Tem o livro daquele actor... o Dano? Ele tem um livro que é igual a uma música portuguesa!
Eu: (e novamente o meu dia começa em grande) Lamento, mas de facto não estou a perceber o que deseja...
Cliente: É igual aquela música: "Já fui ao Brasil, Praia e Bissau..." (sim, o cliente cantou) É os "Vinchi"... e depois sei que é qualquer coisa de um código...
Eu: (de facto, como é possível, podias escrever um guião de um filme para o Lynch) Está a falar do Dan Brown, o escritor? O livro é O Código Da Vinci!
Com tantos livreiros, porque é que me procuram a mim?
quarta-feira, 21 de novembro de 2012
Margarida Vale Gato (2)
A IMAGEM ROMÂNTICA
"Há outras coisas, Horácio,
e a tua filosofia é barata,
na verdade não custa fixar
as coisas ideais à distância:
terás vista panorâmica
mas sempre a visão é polémica.
Gostava que alguém me mostrasse,
mas não terei nunca garantia
de que envelhecer faça sentido.
As pessoas prostram-se, queremos que nos digam
porquê não haver luz nos seus rostos. Crestam
os cravos, antes rubros. Não há modo
de saber se as monarcas
têm memórias arenosas de lagarta.
Tudo sucede dentro de estanques
casulos, a seda é densa,
não se faz ideia
se isto acaba. Estrelas foscas
correm, pessoas morrem, a vida
é breve, impávido o
real se esquiva a designar.
Comparar é colidir: o verbo
talvez nos leve
a mais nenhum sinal."
terça-feira, 20 de novembro de 2012
Inês Dias e Diogo Vaz Pinto (2)
"Não tens de o explicar. Há frases, aliás, que imploraram para não se verem escritas.
Possivelmente, a maioria. Teriam dado grandes momentos de silêncio. Talvez agora
não faça diferença, mas perdeste outra oportunidade.
Deve haver poucas razões. Um nervosismo, uma irritação. E depois começas a
confrontar coisas - exercício desastroso -, escolhendo mais ou menos ao acaso,
deixando que te intriguem por razão nenhuma. E estavas tão bem. Logo te mostras
esquisito. Tens preferências, ideias para mais alguém. Ideias.
Vamos ficar tão cansados de tudo isto. E quando não dá mais, alguém tossica uma
coisa que mal ouves. Desculpa? E repete. Alguém subitamente diz qualquer coisa de
luminoso. O espírito inquieta-se, volta-se no seu eixo trémulo.
Podemos falar longamente. Perde-se a cabeça e só muito depois nos falta a voz.
Tem-se dito muita coisa, estamos todos à espera. Assobiando por escrito. Ninguém
quis dizer nada com o que disse. Era uma disponibilidade, uma simpatia ou uma
espécie de afectação musical. Palavras por preguiça de assumir outro risco.
Palavras que tendiam para uma vadiagem melódica. Enormes rodeios...
Depois, é claro, havia quem quisesse salvar qualquer coisa, e calcular prejuízos.
Só de pensar em todo esse tempo perdido. E logo na juventude.
Que tristeza."
in Revista Cão Celeste
Possivelmente, a maioria. Teriam dado grandes momentos de silêncio. Talvez agora
não faça diferença, mas perdeste outra oportunidade.
Deve haver poucas razões. Um nervosismo, uma irritação. E depois começas a
confrontar coisas - exercício desastroso -, escolhendo mais ou menos ao acaso,
deixando que te intriguem por razão nenhuma. E estavas tão bem. Logo te mostras
esquisito. Tens preferências, ideias para mais alguém. Ideias.
Vamos ficar tão cansados de tudo isto. E quando não dá mais, alguém tossica uma
coisa que mal ouves. Desculpa? E repete. Alguém subitamente diz qualquer coisa de
luminoso. O espírito inquieta-se, volta-se no seu eixo trémulo.
Podemos falar longamente. Perde-se a cabeça e só muito depois nos falta a voz.
Tem-se dito muita coisa, estamos todos à espera. Assobiando por escrito. Ninguém
quis dizer nada com o que disse. Era uma disponibilidade, uma simpatia ou uma
espécie de afectação musical. Palavras por preguiça de assumir outro risco.
Palavras que tendiam para uma vadiagem melódica. Enormes rodeios...
Depois, é claro, havia quem quisesse salvar qualquer coisa, e calcular prejuízos.
Só de pensar em todo esse tempo perdido. E logo na juventude.
Que tristeza."
in Revista Cão Celeste
à espera
"isso que me escorre pelos dedos
não sei, penso: é mais um pouco de vida.
aos poucos
sinto o corpo mais leve,
é quando a morte se aproxima. dizem.
deixo-me estar
sentada
não me movo
vejo passar todas as caras
enojo-me um pouco mais
e a vida continua
a fugir pelos dedos
como areia fina"
segunda-feira, 19 de novembro de 2012
Manuel de Freitas (6)
Better Off Without A Wife
"Esquece o melhor que puderes.
Há drogas e cinemas (por
enquanto). Não vais ser tu a aprisionar
os gestos felizes ou sem rumo
de que ainda sou capaz.
Não é nada de pessoal, garanto-te.
Bebi sempre de mais, acordo
tarde e as crianças estão longe de ser
o meu animal doméstico preferido.
Detesto horários, famílias e obrigações.
Até a partilha dos lençóis,
quando não é o amor a rasgá-los.
Os dias, porém, depressa
nos obrigam ao esterco das rotinas,
ao desejo inútil de procurar
a morte noutros braços.
Mas não. Não vou mudar de marca
de cigarros nem de pasta
dentífrica. Acordo logo que puder,
já sabes. Telefono-te rouco,
eventualmente triste, a precisar
de alguma liberdade para poder provar,
sozinho, que a liberdade não existe
mas dá bastante jeito.
E no entanto, depois disto tudo,
é altamente provável que eu te queira
amar. Como não sei melhor, como sei."
"Esquece o melhor que puderes.
Há drogas e cinemas (por
enquanto). Não vais ser tu a aprisionar
os gestos felizes ou sem rumo
de que ainda sou capaz.
Não é nada de pessoal, garanto-te.
Bebi sempre de mais, acordo
tarde e as crianças estão longe de ser
o meu animal doméstico preferido.
Detesto horários, famílias e obrigações.
Até a partilha dos lençóis,
quando não é o amor a rasgá-los.
Os dias, porém, depressa
nos obrigam ao esterco das rotinas,
ao desejo inútil de procurar
a morte noutros braços.
Mas não. Não vou mudar de marca
de cigarros nem de pasta
dentífrica. Acordo logo que puder,
já sabes. Telefono-te rouco,
eventualmente triste, a precisar
de alguma liberdade para poder provar,
sozinho, que a liberdade não existe
mas dá bastante jeito.
E no entanto, depois disto tudo,
é altamente provável que eu te queira
amar. Como não sei melhor, como sei."
José Tolentino Mendonça (5)
A Estrada Branca
"Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate"
in A Estrada Branca, Assírio & Alvim
"Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate"
in A Estrada Branca, Assírio & Alvim
F.S. Hill (3)
"Papel de embrulho amarrotado,
manhã de carnaval mal passado,
lençol quente em cama vazia,
escova de dentes solitária
em copo manchado pelo sal,
dia e noite e coisa que tal,
pequeno-almoço inexistente,
canção que toca sem tocar,
voz cansada e doente,
fosses mar seria teu,
fosses morte serias minha,
és o que sou e nada és,
afasta-te de mim,
cheiras mal,
isto não é um hospital,
vai-te daqui,
larga,
vai
para onde não sei nem quero saber,
és inútil e sedutora,
porque me queres?
sou mau aluno,
distraio-me,
gosto de coisas
ainda mais inúteis do que eu,
não te sirvo,
não me serves,
se já marcaste o teu regresso,
vai agora,
não percas tempo,
nem me procures iludir
com falinhas mansas,
tu és uma falsa promessa,
uma carta extraviada,
um tiro no pé,
porque vieste?
porque me acordaste?
não te disseram que
o bebé dormia?
não?
teimas em ficar?!
Muito bem,
mas dormes no sofá.
[vida]"
domingo, 18 de novembro de 2012
Nuno Júdice (8)
"Com que monotonia penso em mim;
sentimento distante, que me põem à frente,
na mesa, já frio e sem gosto. Mas vou
comendo, sem pressa, este prato
indigesto; e, a cada garfada, antecipo
a dor de estômago que me irá encher
de pesadelos a noite. Eu: pesada
refeição que não desejo,
mas me puseram à frente.
(E se eu disser que não como?)"
in Poesia Reunida, Dom Quixote
Náusea (2)
A livreira não é de todo, deste tipo de coisas, mas por vezes, certos seres humanos são tão rastejantes que enfim...
Escrever num blogue para tentar passar algo subliminar é muito triste.
Um poema cheio de ódio não é nunca um poema, porque pura e simplesmente além de mal escrito é somente redigido a uma pessoa, isso não é poesia, é uma mensagem.
Um blogue onde abundam copy/past ainda por cima mal feitos, é de uma pobreza indizível; além do mais a falta de conhecimento é tão gritante, que tornam cada post numa anedota.
A um aconselho terapia, a outro ler muitos e bons livros.
(peço desculpa aos meus leitores por este triste post. As coisas boas seguem dentro de momentos.)
Escrever num blogue para tentar passar algo subliminar é muito triste.
Um poema cheio de ódio não é nunca um poema, porque pura e simplesmente além de mal escrito é somente redigido a uma pessoa, isso não é poesia, é uma mensagem.
Um blogue onde abundam copy/past ainda por cima mal feitos, é de uma pobreza indizível; além do mais a falta de conhecimento é tão gritante, que tornam cada post numa anedota.
A um aconselho terapia, a outro ler muitos e bons livros.
(peço desculpa aos meus leitores por este triste post. As coisas boas seguem dentro de momentos.)
Herberto Helder (7)
"Qualquer coisa no retrato ressalta
do espírito de um homem que foi assassinado.
Há um punhal implícito.
Sangue desdobrado.
A cadeira é alta e existe dentro do fogo.
O sexo suposto está masculino. O livro
entreposto à vida e à visão
é um livro feroz e ao mesmo tempo destruído
pela beleza.
Este homem não fala, porque se fez pedra extrema
fechada.
Sua idade ouve-se a si/mesma, infiltrada
até ao terror.
Não tem amor senão do amor.
É um homem devastado pelo pensamento da alegria.
Deus vive nele um tempo obscuro
de esquecimento. Este homem mora
nas coisas miúdas transpostas,
comparadas, alvitradas, justapostas.
Vive em/arco.
Pensa em/espírito de fogueira.
Tem toda a mão queimada até ao silêncio
atroz. Rodearam-lhe a voz.
Contudo, seu ser é destinado à alegria verdadeira."
in Ofício Cantante, Assírio & Alvim
do espírito de um homem que foi assassinado.
Há um punhal implícito.
Sangue desdobrado.
A cadeira é alta e existe dentro do fogo.
O sexo suposto está masculino. O livro
entreposto à vida e à visão
é um livro feroz e ao mesmo tempo destruído
pela beleza.
Este homem não fala, porque se fez pedra extrema
fechada.
Sua idade ouve-se a si/mesma, infiltrada
até ao terror.
Não tem amor senão do amor.
É um homem devastado pelo pensamento da alegria.
Deus vive nele um tempo obscuro
de esquecimento. Este homem mora
nas coisas miúdas transpostas,
comparadas, alvitradas, justapostas.
Vive em/arco.
Pensa em/espírito de fogueira.
Tem toda a mão queimada até ao silêncio
atroz. Rodearam-lhe a voz.
Contudo, seu ser é destinado à alegria verdadeira."
in Ofício Cantante, Assírio & Alvim
Inês Dias e Diogo Vaz Pinto
"Sou eu outra vez.
Camada a camada a camada, vão-nos atulhando o buraco no coração, esse espaço cheio apenas de faltas e futuros, que funcionava como um búzio ainda à espera de voltar a ouvir o mar. Difícil, com tanto ruído sobre ruído sobre ruído. Há quem tente gritar por cima dos seus próprios gritos, quem se perca na reconfirmação da reconfirmação, no reconhecimento, quando ainda nos falta tanto conhecimento.
Outros esperam pela noite mais quieta, mais silenciosa. Sobem. Tentam ouvir. Ouvir-se. Contam aos outros que também já só sabem ficar acordados. Contam-se entre si.
Quantos somos? E que importa se a janela e as estrelas são as mesmas sobre as quais tínhamos lido um capítulo anterior, se a solidão ainda é o mesmo livro emprestado e não mudou de cadência?
Sim, continua a ler. Liga-me quando chegares a esse capítulo e diz-me o que achas."
in Revista Cão Celeste
Camada a camada a camada, vão-nos atulhando o buraco no coração, esse espaço cheio apenas de faltas e futuros, que funcionava como um búzio ainda à espera de voltar a ouvir o mar. Difícil, com tanto ruído sobre ruído sobre ruído. Há quem tente gritar por cima dos seus próprios gritos, quem se perca na reconfirmação da reconfirmação, no reconhecimento, quando ainda nos falta tanto conhecimento.
Outros esperam pela noite mais quieta, mais silenciosa. Sobem. Tentam ouvir. Ouvir-se. Contam aos outros que também já só sabem ficar acordados. Contam-se entre si.
Quantos somos? E que importa se a janela e as estrelas são as mesmas sobre as quais tínhamos lido um capítulo anterior, se a solidão ainda é o mesmo livro emprestado e não mudou de cadência?
Sim, continua a ler. Liga-me quando chegares a esse capítulo e diz-me o que achas."
in Revista Cão Celeste
sábado, 17 de novembro de 2012
Jorge Roque (8)
Importa pela vida
"Importa pela vida que nela se cumpra. Não o rasto, mas cada
um dos passos, tentava dizer. Tão pouco cada um dos passos,
mas o que neles diverge incessante do lugar. Desperto o
exausto debate: quer então dizer que a biografia é relevante
para a obra? (e a expressão é de espanto, quase gozo, foi
de todo inesperado que eu pudesse ser tão, como dizê-lo,
pouco cultivado, inactual) Nada disso, quer dizer que a obra
é desde sempre a biografia. Irrelevante convocá-la porque
já lá está."
Corpo ideia inteira
"A vida é a suprema obra corpo ideia inteira. As palavras
meros sons e tinta. Gestos de um animal que morre e faz
desse labor o seu ofício."
Vive, deixa-te disso
"Perguntavas-me: Jorge, que se passa? Nada, respondi-te.
Inverno fora da estação, caminhos que não se encontram,
linhas desactivadas (o poema abstracto habitual, eu sei, não
precisas de me lembrar). Hoje ocorreu-me resposta mais
exacta. Dá vontade de rir, mas aqui vai: algo que me falta
e que ainda não descobri. Tu não ririas. Mas dirias, e com
razão: vive, deixa-te disso."
(*acho que desde conheci a poesia de Jorge Roque, que vivo apaixonada por ele)
Desassossego (17)
"A humanidade tem medo da morte, mas incertamente; o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribui a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é o acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo; nem sei como pode alguém assemelhar a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que a comparar."
Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (26)
Já me tinha acontecido muita coisa, mas isto é inédito...
Cliente: Eu queria pedir-lhe... (e fica muito parado a olhar para mim)
Eu: Queria pedir...
Cliente: Por um momento quase me apeteceu pedir-lhe a mão em casamento!
Eu: (a tua sorte é haver câmaras por todo o lado, senão torcia-te a mão até ficares de joelhos)
Cliente: Eu queria pedir-lhe... (e fica muito parado a olhar para mim)
Eu: Queria pedir...
Cliente: Por um momento quase me apeteceu pedir-lhe a mão em casamento!
Eu: (a tua sorte é haver câmaras por todo o lado, senão torcia-te a mão até ficares de joelhos)
quinta-feira, 15 de novembro de 2012
Rainer Maria Rilke (3)
"A minha vida não é esta hora inclinada
em que apressar-me vês.
Sou uma árvore sobre o meu fundo desenhada
sou apenas uma das minhas bocas já calada
quando chegada foi a sua vez.
Sou o silêncio que entre dois sons circula
que um ou outro mal se habituam
pois o som da morte quer levantar-se...
Mas nesse sombrio intervalo vêm reconciliar-se
ambos a tremer.
E a canção a embelezar-se."
in O Livro de Horas, Assírio & Alvim
em que apressar-me vês.
Sou uma árvore sobre o meu fundo desenhada
sou apenas uma das minhas bocas já calada
quando chegada foi a sua vez.
Sou o silêncio que entre dois sons circula
que um ou outro mal se habituam
pois o som da morte quer levantar-se...
Mas nesse sombrio intervalo vêm reconciliar-se
ambos a tremer.
E a canção a embelezar-se."
in O Livro de Horas, Assírio & Alvim
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
I'm filled with violet and red and blue
Diogo Vaz Pinto (3)
A Alguns Gritos de Distância
más allá qualquier zona prohibida
bay un espejo para nuestra triste transparencia
Alejandra Pizarnick
I
"A dois gritos e meio de distância
a surdez que se mancha
das cores que me sobraram. Sinto
com a voz, e esta só me dói quando fica
presa às coisas numa evasão
descritiva, palavras abertas
como lâminas sonhando junto
aos pulsos.
A sul disto não encontro mais nada,
só a boca escancarada do silêncio, suja
aos cantos de ideias que
se despenharam, e nós,
dois ou três ou mais, escrevendo
enquanto lhes apodrecemos
na garganta.
Sob sóis apagados, flores quer bebem
no escuro, escutando, cheirando
estas mãos e aquilo que lhes dou, e nada
disto é ainda poesia, mau hálito tão só.
Um eflúvio de frias imagens rente
ao torpor destes lábios. Já o sabes,
agora anda - faz-me o favor -
desvia-te que me aborrece ter que
arrastar também esses dois olhos.
II
A sós, levei-me a uma praça onde o vento,
como tudo, me foi desfavorável, mas gostei
(e como) de deixar correr um grosso fio
de urina na minha sombra. Sentei-me depois,
abri o caderno e a noite, descalça,
passou-lhe por cima, toda mal pintada,
descabelada, rindo-se
sozinha e provocando a clientela
com os seus truques de puta eterna.
Nas calças desmanchava-se de novo
o sexo, lembrança vadia cuspindo-se
e puxando para trás, para a oleosa névoa
de um bar: estofos furados, o leve
desgaste nas mesas e os nomes
arranhados nos braços de um vazio
melodioso.
Canções que chegam muito tarde,
e se servem da carne de quem
nem talvez conheça outro descanso.
Um mal-estar cheio de gente encostada,
querendo deixar a vida
à primeira rima que facilite
um ponto final neste português
que tão devagar se suicida."
in Nervo, Averno
terça-feira, 13 de novembro de 2012
...tender...
* mais uma que sufoca a alma
Jorge Roque (7)
"Suicido-me devagar a pão com queijo, vinho tinto, cigarros e solidão. Bem sei que podia comprar sopa, já que não a faço. Podia também comprar um microondas, serviria para aquecer a sopa e ainda preparar refeições pré-cozinhadas. Não se trataria de um grande passo, do ponto de vista do destino da humanidade, mas significaria ao menos comida quente no prato. Podia até casar-me segundo o juízo optimista da minha mãe, e deste modo adquirir tudo isto num pacote bonificado, diminuindo o custo de cada um dos artigos considerados. Está tudo certo por conseguinte, ou errado. Determinam os factos, no entanto, que o casamento é para mim um caso semelhante ao do microondas, ou seja, uma circunstância de que não suporto o ruído e, não serei eu que o anuncie, se há coisa que ninguém pode é ser aquele que não é (assim se desmorona um admirável plano, ignorando as esperanças da minha mãe). Resta acrescentar que nada há de heróico no meu gesto, nem eu me ocupo já de o iludir. É a mão que tenho (e a que não tenho). O prato que recuso (e o que aceito).
Pão com queijo, vinho tinto, cigarros e solidão, cumpro-me no que sou: um exemplar falhado da espécie."
in Ladrador, Averno
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (25)
Porque de facto, e por vezes, existem coisas (quase) indizíveis...
Cliente: Olhe, não sabe onde posso tirar fotocópias ao livro. É que eu não o queria levar todo.
Eu: (wtf) ....................................
Cliente: Procuro um livro, não sei o título, nem o autor... Mas com esse bom aspecto, eu sei que me vai ajudar!
Eu: (wtf)....................................
(Karma de livreira?)
Cliente: Olhe, não sabe onde posso tirar fotocópias ao livro. É que eu não o queria levar todo.
Eu: (wtf) ....................................
Cliente: Procuro um livro, não sei o título, nem o autor... Mas com esse bom aspecto, eu sei que me vai ajudar!
Eu: (wtf)....................................
(Karma de livreira?)
Carlos Alberto Machado (5)
"Levamos anos a cinzelar vontades
num tempo propício à aprendizagem
de nós só falávamos pelos outros
e arriscámos desencontros vários
então um dia disseste estou a tropeçar
na minha memória com as tuas palavras
e eu deixei que elas falassem por mim
e tu amantíssima recebeste-as na noite
shiva velando por nós até ao amanhecer.
-
O meu corpo enrosca-se na noite do teu corpo
adormecidas as minhas palavras ondulam na tua boca
da tua respiração soltam-se borboletas azuis
acordado sigo ainda os teus invisíveis trajectos
é neles que leio as palavras esquecidas na noite
uso cautelosamente o antigo saber divinatório
enquanto danças sobre a terra vestida de lavanda."
in A Realidade Inclinada, Averno
num tempo propício à aprendizagem
de nós só falávamos pelos outros
e arriscámos desencontros vários
então um dia disseste estou a tropeçar
na minha memória com as tuas palavras
e eu deixei que elas falassem por mim
e tu amantíssima recebeste-as na noite
shiva velando por nós até ao amanhecer.
-
O meu corpo enrosca-se na noite do teu corpo
adormecidas as minhas palavras ondulam na tua boca
da tua respiração soltam-se borboletas azuis
acordado sigo ainda os teus invisíveis trajectos
é neles que leio as palavras esquecidas na noite
uso cautelosamente o antigo saber divinatório
enquanto danças sobre a terra vestida de lavanda."
in A Realidade Inclinada, Averno
Al Berto (11)
"chove. vou sair para beber bicas e ver caras. e ficar em silêncio no meio do barulho. e ficar sozinho no meio das pessoas. já não consigo estar sozinho se não estiver rodeado de gente ruidosa e chata.
rua da ponte: mais uma morada que fica para trás neste percurso de me fugir constantemente (se ao menos conseguisse dormir bem e o sono fosse reparador dos cansaços!) estou imensamente cansado, cansado de mim. o mundo assusta-me e já não tenho curiosidade alguma em saber as razões de me assustar. sou um farol que o faroleiro abandonou à vertigem das tempestades, descontrolado, solitário, vai consumindo o pouco de energia que lhe resta. um dia serei uma ruína sem luz. um morto.
que bem que te fica a risca ao meio. não sei bem se continuo apaixonado, não sei bem se vale a pena continuar apaixonado por ti. não sei. vejo-te e todo eu tremo. todo o meu corpo é um lamento, e pede socorro ao teu olhar, às tuas mãos. a um simples sorriso. uma palavra que me descanse.
com o tempo, murcharam as palavras que guardava para te dizer... as afiadas sílabas já não rompem os papeis alicerces do coração. desce este silêncio sobre a casa, onde outro silêncio mais antigo já se instalara.
com o tempo desfolham as ilusões, não voltarás aqui. mas se por acaso regressares de mim nada encontrarás.
estarei sozinho? em que espelho virá à superfície teu rosto? em que lado do coração rebentará o choro?"
segunda-feira, 12 de novembro de 2012
F.S. Hill (2)
"Fazes-me falta,
como os dentes que trago na boca,
para mastigar a realidade.
O mundo são mil maçãs
e tu um dióspiro.
Os teus olhos são a minha varanda,
de onde vejo o silêncio das coisas.
És a casa sem sofá,
sala de espera sem consultório,
armário despido de gente,
onde me sento
e todo eu sou pele."
Al Berto (10)
"ainda é cedo para saber até onde mentiram os espelhos. o único consolo para a dor é saber que o desejo pode ser inesgotável. passo os dias absorvido com trabalhos caseiros, evito pensar em ti.
cavo, planto, enxerto, podo, varro, limpo, cozinho, arrumo, lavo. é cada vez mais importante não me lembrar de mim. tem soprado um vento glacial. fortíssimo, o que me desequilibra imenso. enfio um gorro de lã até às orelhas, mas de pouco serve, o vento fustiga-me à velocidade do sangue. tremo o dia todo,
como se tivesse alguma febre maligna. há três dias que não como e vivo, enroscado, junto à lareira. durmo no chão, mantenho o fogo aceso noite e dia."
in O Medo, Assírio & Alvim
cavo, planto, enxerto, podo, varro, limpo, cozinho, arrumo, lavo. é cada vez mais importante não me lembrar de mim. tem soprado um vento glacial. fortíssimo, o que me desequilibra imenso. enfio um gorro de lã até às orelhas, mas de pouco serve, o vento fustiga-me à velocidade do sangue. tremo o dia todo,
como se tivesse alguma febre maligna. há três dias que não como e vivo, enroscado, junto à lareira. durmo no chão, mantenho o fogo aceso noite e dia."
in O Medo, Assírio & Alvim
domingo, 11 de novembro de 2012
Renata Correia Botelho (4)
"já ninguém nos toca à porta
a vender cerejas.
devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome
plantar sílabas frescas
que nos matem a sede
ter um pingo de esperança
na morte depois da vida."
in Um Circo no Nevoeiro, Averno
a vender cerejas.
devíamos talvez lembrar
à terra o nosso nome
plantar sílabas frescas
que nos matem a sede
ter um pingo de esperança
na morte depois da vida."
in Um Circo no Nevoeiro, Averno
sábado, 10 de novembro de 2012
José Tolentino Mendonça (4)
Escrito num livro de horas
"Enquanto as cidades costeiras
o coro trágico da posteridade
aspira o ar
como funcionário que se prepara
para as tarefas do dia
avisto os teus olhos
Os teus olhos deveriam ter nascido em épocas diferentes
em mundos diferentes
não neste lugar panorâmico e incurável
onde os sentidos são
repetidamente censurados
nestes barrancos áridos
para que o tempo passe
com todas as armas da culpa
No salva-vidas enquanto o meu navio se afunda
os teus olhos
dos quais nunca me poderia defender
erguem-se num louvor
capaz de ensurdecer para sempre
os que duvidam"
in Estação Central, Assírio & Alvim
"Enquanto as cidades costeiras
o coro trágico da posteridade
aspira o ar
como funcionário que se prepara
para as tarefas do dia
avisto os teus olhos
Os teus olhos deveriam ter nascido em épocas diferentes
em mundos diferentes
não neste lugar panorâmico e incurável
onde os sentidos são
repetidamente censurados
nestes barrancos áridos
para que o tempo passe
com todas as armas da culpa
No salva-vidas enquanto o meu navio se afunda
os teus olhos
dos quais nunca me poderia defender
erguem-se num louvor
capaz de ensurdecer para sempre
os que duvidam"
in Estação Central, Assírio & Alvim
Louise Glück
Um Mito de Devoção
"Decidido a amar aquela rapariga,
Hades construiu-lhe um duplicado da terra,
tudo igual, até o prado,
mas com uma cama no meio.
Tudo igual, incluindo a luz do sol,
pois não seria fácil a uma rapariga nova
passar tão bruscamente da luz intensa à completa escuridão.
Aos poucos, pensou ele, faço entrar a noite,
primeiro as sombras das folhas agitadas.
Depois a lua, depois as estrelas. Depois sem lua, sem estrelas.
Que Perséfone se habitue lentamente ao escuro.
No fim, pensou ele, ser-lhe-á reconfortante.
Uma réplica da terra,
mas com uma excepção: amor.
Não é amor o que toda a gente deseja?
Ele esperou muitos anos,
construiu um mundo, observou
Perséfone no prado.
Perséfone, que amava os cheiros, os sabores.
Quem tem um apetite, pensou ele,
tem todos.
Não é o que toda a gente deseja sentir à noite -
o corpo amado, bússola, estrela polar,
ouvir a respiração tranquila, que significa
estou vivo, que significa ainda
estás vivo, porque me escutas,
porque estás aqui comigo. E quando um se volta,
volta-se o outro também -
Era o que ele pensava, o senhor das trevas,
ao contemplar o mundo que
construíra para Perséfone. Nunca lhe ocorreu
que já nada haveria ali para cheirar,
muito menos para comer.
Culpa? Terror? Medo de amar?
Nada disto podia ele conceber;
nenhum amante o concebe.
Ele sonha, pergunta-se que nome há-de pôr àquele lugar.
Primeiro pensa: O Novo Inferno. Depois: O Jardim.
Finalmente decide chamar-lhe
A Mocidade de Perséfone.
Uma luz ténue ergue-se acima do prado liso,
por detrás da cama. Ele toma-a nos braços.
Deseja disser-lhe amo-te, nada te ferirá
mas compreende
que é mentira, e acaba por dizer
estás morta, nada te ferirá
o que lhe parece
um começo mais auspicioso, mais verdadeiro.
Tradução de Rui Pires Cabral
in Telhados de Vidro n.º12, Averno
"Decidido a amar aquela rapariga,
Hades construiu-lhe um duplicado da terra,
tudo igual, até o prado,
mas com uma cama no meio.
Tudo igual, incluindo a luz do sol,
pois não seria fácil a uma rapariga nova
passar tão bruscamente da luz intensa à completa escuridão.
Aos poucos, pensou ele, faço entrar a noite,
primeiro as sombras das folhas agitadas.
Depois a lua, depois as estrelas. Depois sem lua, sem estrelas.
Que Perséfone se habitue lentamente ao escuro.
No fim, pensou ele, ser-lhe-á reconfortante.
Uma réplica da terra,
mas com uma excepção: amor.
Não é amor o que toda a gente deseja?
Ele esperou muitos anos,
construiu um mundo, observou
Perséfone no prado.
Perséfone, que amava os cheiros, os sabores.
Quem tem um apetite, pensou ele,
tem todos.
Não é o que toda a gente deseja sentir à noite -
o corpo amado, bússola, estrela polar,
ouvir a respiração tranquila, que significa
estou vivo, que significa ainda
estás vivo, porque me escutas,
porque estás aqui comigo. E quando um se volta,
volta-se o outro também -
Era o que ele pensava, o senhor das trevas,
ao contemplar o mundo que
construíra para Perséfone. Nunca lhe ocorreu
que já nada haveria ali para cheirar,
muito menos para comer.
Culpa? Terror? Medo de amar?
Nada disto podia ele conceber;
nenhum amante o concebe.
Ele sonha, pergunta-se que nome há-de pôr àquele lugar.
Primeiro pensa: O Novo Inferno. Depois: O Jardim.
Finalmente decide chamar-lhe
A Mocidade de Perséfone.
Uma luz ténue ergue-se acima do prado liso,
por detrás da cama. Ele toma-a nos braços.
Deseja disser-lhe amo-te, nada te ferirá
mas compreende
que é mentira, e acaba por dizer
estás morta, nada te ferirá
o que lhe parece
um começo mais auspicioso, mais verdadeiro.
Tradução de Rui Pires Cabral
in Telhados de Vidro n.º12, Averno
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