sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Ana Paula Inácio (2)

"queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos"

in Vago pressentimento azul por cima

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

why do you dance so sad?



*to little M. 

Desassossego (19)

  "É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.
     Só o Tédio, que é um afastamento, e a Arte, que é um desdém, douram de uma semelhança de contentamento a nossa.
     Fogos-fátuos que a nossa podridão geral, são ao menos luz nas nossas trevas.
     Só a infelicidade elementar e o tédio puro das infelicidades contínuas, é heráldico como o são descendentes de heróis longínquos.
     Sou um poço de gestos que nem em mim se esboçaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lábios, de sonhos que me esqueci de sonhar até ao fim.
     Sou ruínas de edifícios que nunca foram mais do que essas ruínas, que alguém se fartou, em meio de construí-las, de pensar em que construía.
     Não nos esqueçamos de odiar os que gozam porque gozam, de desprezar os que são alegres, porque não soubemos ser, nós, alegres como eles... Esse sonho falso, esse ódio fraco não é senão o pedestal tosco e sujo da terra em que se finca e sobre o qual, altiva e única, a estátua do nosso Tédio se ergue, escuro vulto cuja face um sorriso impenetrável nimba vagamente de segredo.
     Benditos os que não confiam a vida a ninguém."

Bernardo Soares (Fernando Pessoa) 

Diz-te a canção do medo


domingo, 30 de junho de 2013

I no longer feel at home


Fernando Guerreiro (2)

Lendo Petrarca 

"Gli suspiri al freddo cuore,
alguém o disse, pouco crente
na fiabilidade do sentimento
e deixando ao pintor a tarefa 
de reter sob espessas camadas
de tinta o segredo que para si,
defendendo-o do exterior,
guardara o livro. Todos
os mortos têm uma segunda
vida (pensou): pela poesia,
manto que os devolve à luz
numa carne que os torna -
para quem neles acreditou -
ainda mais puros e vivos.
De tuoi sguardi mio ardore,
murmurou, aceitando
viver com as dores que 
o defendiam das dúvidas
quanto ao carácter salvífico 
do sacrifício. Amara-a 
sem necessitar de palavras,
a não ser as que ela lhe
doou, debruadas a sangue
no miolo do precipício.
Era esse o seu legado:
encontrar um significado
para palavras que a paixão
conservou mesmo depois
de exauridas na pequenez
dos seus múltiplos sentidos."

in Telhados de Vidro nº6 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

All in all it´s just a start


José Amaro Dionísio (2)


Post - Scriptum 

"O arresto de duas palavras para contar apenas o improvável, quando a noite foi ainda capaz de oferecer a luz abatida na face esquerda do seu rosto, o extravio dos seios abandonado à blusa transmissível, e de súbito levanta-se, atravessa a sala, a saia colada ao império de uma mudez deserta. 
Era só isto que queria dizer. Depois da morte hei-de talvez acrescentar que cheguei a amar a perda do que amei, mas será tarde demais, o tempo é afinal uma possibilidade tão inútil como o resto."

domingo, 23 de junho de 2013

Helder Moura Pereira (9)

"Melhor fora que viesses sem saber
de mim o que quer que fosse.
Isso é que seria recomeçar a valer
e não apenas com o que te trouxe.
Para que isto não ficasse viciado
à partida, protegia metade da alma.
A metade que, quando estou deitado,
fica para baixo e me acalma.
Que corpo afectivo e voraz
me deixa assim contente e vivo?
O corpo que sempre me traz
razão activa ao meu ser passivo.
Pediste-me o livro da emoção
e nele não leste nenhum compromisso.
Discutimos antes a decoração,
um de nós tem de ceder nisso."

in Pela Parte Que Me Toca, Assírio & Alvim 

sexta-feira, 21 de junho de 2013

I'm in a chrysalis and I'm snowed in




Manuel Gusmão (2)

"Teria talvez mudado a mão do vento; ou súbito seria
um ritmo outro nas árvores invadindo a partitura;
Ou talvez apenas fosse que alguém ali

perto ou longe - tendo podido cantar - então cantasse.

Teriam vibrado os contornos das figuras; a voz
teria posto fogo às páginas que escurecidas
redemoinhavam nos paredões abandonados

junto ao rio, demasiado
fundo, demasiado lento, demasiado antigo."

in Telhados de Vidro nº6, Averno