sábado, 31 de março de 2012

Try to reveal what I could feel

Ana Hatherly (3)

Falo do que é físico

"Falo do que é físico porque não tenho outra realidade.
Falo do corpo
do mundo
do que ainda não sabemos e chamamos divino.

Falo do que é físico
porque tudo o que é real tem corpo e ocupa espaço.

Falo disso.
Falo do que existe
e tudo é tanto que nunca chega o tempo
nunca chega o fôlego.

Vejo até à asfixia
gente, coisas, o invisível.

Tudo me faz estar em permanente frêmito
sair para a rua de noite
e andar até cair de cansaço.
Pensando em tudo isso
extremamente sobreposto
como se uma grande dor não anulasse outra
como se fosse possível
pensar em mais de uma coisa de uma só vez
sentindo o simultâneo impossível
querendo abranger
a incontrolável voracidade dentro de tudo.

Corro por mim fora
como um grande atleta
campeão de barreiras e distâncias invencíveis
tentando vencer
mas tudo é enorme e intrincado
tudo em mim são olhos vigilantes
sem jamais pálpebra.

Mas tudo isso não chega.
Tudo é enorme
e morro tão depressa."

in A Idade da Escrita, edições Tema

"Roubado" aqui

sexta-feira, 30 de março de 2012

Renata Correia Botelho (2)

La Confession


"também eu trago nos ossos
a culpa, a minha grande culpa,
um hábito antigo e longo
que me disfarça as cicatrizes.


tenho frio e uma confissão
para te fazer: traí-te tanto
com outros versos, corpos
belíssimos, esguios e quentes
aninhando-se comigo na cama.


trago esta culpa nos ossos,
enganei-te letra após letra,
sem pudor, feri de morte ton espoir
etnton grand sens de l'honneur,
essa vaidade de verso livre
com que atravessas o papel.


traí-te sem pensar e dir-te-ia
para partires já, ligeiro e mudo,
não fosse esta grande culpa
nos ossos, que me  reescrever-te
ainda sobre o vazio do poema."


in small song, Averno

Everybody Here Wants You



"Twenty-nine pearls in your kiss, a singing smile,
Coffee smell and lilac skin, your flame in me.
Twenty-nine pearls in your kiss, a singing smile,
Coffee smell and lilac skin, your flame in me.
I'm only here for this moment.


I know everybody here wants you.
I know everybody here thinks he needs you.
I'll be waiting right here just to show you
How our love will blow it all away.


Such a thing of wonder in this crowd,
I'm a stranger in this town, you're free with me.
And our eyes locked in downcast love, I sit here proud,
Even now you're undressed in your dreams with me.
I'm only here for this moment.


I know everybody here wants you.
I know everybody here thinks he needs you.
I'll be waiting right here just to show you
How our love will blow it all away.


I know the tears we cried have dried on yesterday
The sea of fools has parted for us
There's nothing in our way, my love


Don't you see, don't you see?
You're just the torch to put the flame
to all our guilt and shame,
And I'll rise like an ember in your name.
I know, I know


I know everybody here wants you.
I know everybody here thinks he needs you.
I'll be waiting right here just to show you
Let me show that love can rise, rise just like
embers.


Love can taste like the wine of the ages, baby.
And I know they all look so good from a distance,
But I tell you I'm the one.
I know everybody here will thinks he needs you,
thinks he needs you
And I'll be waiting right here just to show you."


segunda-feira, 26 de março de 2012

Almada Negreiros

Canção da Saudade

"Se eu fosse cego amava toda a gente.

Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantaziá-la viva na minha idade.

Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.

Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.

Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.

Eu amo os cemitérios — as lagens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a Lua do lado que eu nunca vi.

Se eu fosse cego amava toda a gente."

in Frisos - Revista Orpheu nº1

Rainer Maria Rilke (2)

Solidão  

"A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios..."

in O Livro das Imagens, Relógio d'Água

So I love Peanuts

Peanuts







sexta-feira, 23 de março de 2012

Ana Hatherly (2)

A matéria das palavras


"Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma
                                                                        perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes."

in O Pavão Negro, Assírio & Alvim

quinta-feira, 22 de março de 2012

Absolute Beginners

"I've nothing much to offer
There's nothing much to take
I'm an absolute beginner
And I'm absolutely sane
As long as we're together
The rest can go to hell
I absolutely love you
But we're absolute beginners
With eyes completely open
But nervous all the same

If our love song
Could fly over mountains
Could laugh at the ocean
Just like the films
There's no reason
To feel all the hard times
To lay down the hard lines
It's absolutely true

Nothing much could happen
Nothing we can't shake
Oh we're absolute beginners
With nothing much at stake
As long as you're still smiling
There's nothing more I need
I absolutely love you
But we're absolute beginners
But if my love is your love
We're certain to succeed

If our love song
Could fly over mountains
Sail over heartaches
Just like the films
There's no reason
To feel all the hard times
To lay down the hard lines
It's absolutely true" 


*To little M.

quarta-feira, 21 de março de 2012

José Tolentino Mendonça (2)

De Profundis

"Faltam aos planos das cidades
esfinges aladas
palmas fora de tempo, matagais
pequenos acrescentos a vermelho

Faltam atlas com algum detalhe
para as emissões nocturnas
nos agudos da nossa incerteza
falta um beleza
a olhar para nós
indiscernível, entreaberta ainda

Talvez a nós próprios falte
essa grande medida
insondáveis cordas na travessia
uma juventude que o mundo possa
documentar

os teus olhos são o que resta
dos livros sagrados
e da grande pintura perdida"

in O Viajante Sem Sono, Assírio & Alvim

Desassossego (13)

"De repente, como se um destino médico’ me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
     Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
     Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
     Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara."

 Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

segunda-feira, 12 de março de 2012

Take me out tonight


Jorge Roque (2)

Criança triste

"Que noite tão escura devorou os teus olhos? Que sombra projectas que os dias te estranham? Que caminhos te restam sob esta luz? Olhas em volta, tentas repetir os gestos com que outros fazem a vida. Mas nas tuas mãos esses gestos são sempre ocos, nada predem, nada deslocam, apenas o vazio cresce no buraco cada vez mais largo do peito. Só que parar também não é solução. Privado de movimento o vazio torna-se peso e oprime ainda mais. É preciso assim continuar, mover as pernas sobre terra igual e nada buscar. Outrora conseguias fazê-lo como forma de exercício. Com o tempo até o exercício se cansou, pois mesmo ele supunha um propósito que o vazio apagou. Olha-te no espelho dos teus olhos gastos: há muito que perdeste as lágrimas, sustenta-te agora de um fio de voz, linha frágil que te separa da noite total onde a dor é apenas escuro esmagado e a esperança boca separada do ar. Olha-te de frente: o que chamavas vida acabou, esse que te olha nada tem a dizer-lhe. Repara: tem o olhar fixo dos mortos, não é o infinito ou o vazio que fita, é o próprio olho objecto absoluto. Não sei se viste. Não sei sequer se era de mim que falavas. Sei que as tuas mãos pararam um momento sobre a conversa e tu disseste: é assustador porque és uma criança triste, nenhuma palavra te pode alcançar. Assim dito, como negá-lo? Sou de facto uma criança triste que deixou na infância a parte do sorriso que precisava para poder iluminar a alegria. A dor foi sempre maior que a vida, tanto que passei a vida a matar-me para nela me reconhecer. Algures devo ter morrido, assim me habituei a entendê-lo, renascer implicaria voltar atrás e conhecer essa morte, desenterrar o rosto que o negro cobriu. Mas são anos e anos de terra pisada, camadas e camadas de negro cumulado, removê-lo demoraria mais do que a vida e ainda que uma vida bastasse, haveria todo o negro entretanto. Tarde demais ambos sabemos, e eu só posso dizer-te: sim, sou essa criança triste. Faz-me uma carícia ao de leve, diz-me palavras em voz serena. Deixa que os meus olhos se fechem, deixa que o negro se esqueça. Depois sai e fecha a porta sem ruído."

in Broto Sofro, Averno

Lenore







Para o Gabriel*

sexta-feira, 9 de março de 2012

In a Bar

"I wanna meet a friend in a bar tonight
the evening is long
so long i hardly move
A can in my hand
a picture in my mind
a voice I need to hear, a laugh I need to show
We' re lonely, babe
in a boat, again
I need to see a friend tonight or see the people in a bar
I wish they could not see me at all
How I wish I could describe their pain
or my pain
The mystic light, the choir of smoke
The smell of wood, the pose, the joke
The dirty little world inside that needs to come out
needs to come out
I wanna meet a friend in a bar tonight
the evening is long
If only I had that strength
to see those people, all so lonely as me"

Flannery O'Connor (3)

 O Gerânio

"Nova Iorque era elegante e agitada num instante, suja e mortiça no seguinte. A filha dele nem sequer morava numa casa. Morava num prédio - no meio de uma fileira de prédios todos iguais, cinzentões e vermelhos, enegrecidos, cheios de gente de voz aspera que ficava pendurada para fora da janela a olhar para outras janelas e outra gente como aquela que olhava também. Dentro do prédio podia subir-se e podia descer-se e havia um sem-fim de corredores que faziam lembrar fitas métricas desenroladas com portas de centímetro em centímetro. Recordava-se de ter ficado espantado com o prédio na primeira semana. Acordava na expectativa de os corredores terem mudado de sítio a meio da noite, espreitava pela porta e lá estavam eles, estendidos como canis corridos. As ruas também eram assim. Perguntava-se a si próprio onde iria parar se caminhasse até ao fim de uma delas. Numa noite sonhou que assim fazia e ia ter à porta do prédio - a lado nenhum.
Na semana seguinte tornou-se mais consciente da presença da filha, do genro e do filho de ambos - não havia canto onde não os estorvasse. O genro era uma ave rara. Conduzia um camião e só vinha a casa aos fins-de-semana. Dizia «ná» em vez de «não» e nunca tinha ouvido falar em sarigueias.
O velho Dudley dormia no quarto com o menino, que tinha dezasseis anos e com quem não se podia falar. Mas às vezes, quando o velho Dudley e a filha ficavam sós no apartamento, esta sentava-se para conversar com ele. Primeiro tinha de pensar em qualquer coisa para dizer. Normalmente esgotava o assunto antes de chegar o que considerava ser a altura correcta para se levantar e ir fazer outra coisa, portanto ele tinha de dizer fosse o que fosse. Ela nunca se dignava a ouvir a mesma conversa duas vezes. Estava empenhada em que o pai passasse os últimos anos de vida com a própria família e não numa residência decrépita cheia de velhotas de cabeças trémulas. Estava a cumprir o seu dever. Tinha irmãos e irmãs que não cumpriam."

in O Gerânio - Contos Dispersos, Cavalo de Ferro

quinta-feira, 8 de março de 2012

The kind that helps me to heal

Quando uma só vida não chega para filmes assim (19)

Far Away

"Far away, once so close
But now you’re far away
You’re still here with me
But not like yesterday, so far
Far away, I hear you breathe
But you’re so far away
Once so colourful
But now all turns to grey, so far
It’s oh so strange
When centimetres feels like miles
Seconds like hours
Now it’s true love has died
No more roads left to try, far away
Far away, long ago
When love was here to stay
Now it’s gone
It doesn’t matter what we say, so far
Every word is like a knife
But the silence cuts you twice"

Jay Jay Johanson

José Miguel Silva

Preocupações Naturais

"Eu não tinha muita coisa e hoje tenho
a soma dos teus passos quando desces
a correr os nossos treze degraus e
me prometes: até logo. Mas se
nada (ou só o nada) está escrito,
quem mais ama é quem mais tem
a recear. Com isso, passo as horas
num rebate de dramáticos motivos:
engano-me na roda de temperos,
ponho sal na cafeteira, maionese
no saleiro, vejo o mel mudar de cor
e se me chama o telefone empalideço
como o rosto do relógio da cozinha.
Só sossego quando as gatas me garatem
que chegaste e posso então, aliviado,
unir-me ao coro de miaus que te recebe,
para mais uma noite roubada ao escuro."

A Caminho do Fogão

"Adoro essa paixão absurda que tens por Hitchcock,
o ar despenteado com que chegas a casa e me dizes:
outra vez sopa de nabos; adoro a impaciência com
que me arrancas aos diálgos com o nada, quando
me contas os teus feitos na república do frio; adoro
a tua insónia, o teu espírito lavado por agudos desenganos;
outrossim acompanhar-te nas perguntas sublinhadas
pelo tempo, e o teu corpo possuído pela mágica
da música amorosa, quando dança seminu à minha 
frente e eu só penso: que bem feito está o mundo."

Esconde-Esconde

"A nossa vida, libertada, pode agora
começar, dissemos, com o optimismo
de quem inaugura um abrigo decente
e se pretende a salvo das cargas
do mundo. A salvo? Lá  mais para
diante se verá que não é bem assim.
Mas por enquanto não pensemos nisso.
Apreciemos a herança de cada tarde,
quando o oiro do crepúsculo acumula
sentimento sobre muros tão perfeitos
que podiam estar no British Museum
e nenhuma convulsão nos prende a vista"

in Serém, 24 de Março, Averno

quarta-feira, 7 de março de 2012

Born With a Broken Heart

"You cannot miss what don't exist
You cannot break a broken heart
I'd like to tell you my story
But there's no story to tell

'Til now my life has been boring
A list of fond farewells
I'm a ridiculous creature
I'm like a bird without wings

My heart's in permanent winter
Yours is forever spring
You're a truly lovely thing

But I was born with a broken heart, girl
I was born with a broken heart
I should have told you from the start, girl
I should have told you from the start
I was born with a broken heart

I look alright on the outside
I look like all of the rest
But there is always a downside
A secret to confess
I've tried so hard not to show it

I've tried so hard to be warm
But I can see that you sense it
When you are in my arms
I don't wanna see you harmed

I was born with a broken heart, girl
I was born with a broken heart
I should have told you from the start, girl
I should have told you from the start
I was born with a broken heart

You cannot miss what don't exist
You cannot break a broken heart

I was born with a broken heart
I should have told you from the start, girl
I should have told you from the start
But I was born with a broken heart"

The Divine Comedy

it was you who covered up my face


Para o Gabriel*

terça-feira, 6 de março de 2012

Weeping Tree

"Weeping tree, shoulders to the sky
Never understood why
Weeping tree, should've let you go
How was I to know?

And if you find a clue
I hope you find it soon
Some people hold their breath forever
And if you find a house
Where you can live without the one you love
Weeping tree, fruitless, stands alone
where lovers long dead used to go
Weeping tree, should've let you go
But how was I to know?

And if you find a clue
I hope you find it soon
Some people hold their breath forever
And if you find a house
Where you can live without the one you love "

Perry Blake

Desassossego (12)

"Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. Essa planta é a alegria dela, e também por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distracção de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou me não basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida.
     Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de amanhã ter pena de ter tido pena hoje - grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos...
     ... onde, encolhido num banco de espera da estação apeadeiro, o meu desprezo dorme entre o gabão do meu desalento’...
     ... o mundo de imagens sonhadas de que se compõe, por igual, o meu conhecimento e a minha vida...
     Em nada me pesa ou em mim dura o escrúpulo da hora presente. Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições."


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Maria Velho da Costa

128.

"A regra de uma solidão de pedra, ou aérea, face à tua arte.
O levantamento da mão que prossegue após haver soletrado rostos,
partição de rosas, o desatamento nas trevas de uma visualidade
extrema de todos os sentidos - não fales onde o teu amor balbucia
como o fio de água, precariamente, pelo leito que se prefaz na
recorrência das chuvas."

in Da rosa fixa, Quetzal

Lost in...

segunda-feira, 5 de março de 2012

Ana Teresa Pereira (6)


"Passou o dia comigo, silenciosa, enquanto eu trabalhava na mesa de carvalho. Ao entardecer, quando o vermelho invadiu tudo, ela levantou-se, o cabelo vermelho, o corpo magro vermelho, veio beijar-me a fronte. Acariciou o Sam, deu um último jeito nas flores, deteve-se por instantes, com um sorriso a vaguear-lhe no rosto, no canto onde a aranha imóvel respirava na sua teia. (...)
Apoiei os cotovelos ne mesa, fiquei a olhar para o mar imóvel, a água esverdeada, o azul profundo ao longe, um resto de vermelho, depois o escuro. E o som das vagas."

Jorge de Sena (2)

De correr mundo

"De correr mundo as terras e os humanos
como paisagem que ante os olhos passa,
e às vezes percorrer umas e outros
nos breves intervalos entre duas viagens,
uma incerteza deixa que é diversa
da que se aprende no convívio longo:
quem se demora vê, sob as fachadas
ou as perspectivas de alta torre feitas
um gesto em que se mostra uma outra vida,
ou troca frases que desnudam crua
o que de interno ser sob as fachadas vive;
mas quem só passa e mal aos outros toca
com mais que olhares ou fugidias vozes,
mais adivinha o que não é paisagem
mas dia a dia tão diverso dela
ou pelo menos para além ansioso.
Mas, se num caso a vida se conhece
e noutro caso nos conhece a nós,
por ambos aprendemos que do mundo
se vive o que não passa, ou se não vive
o que passando é só terras e gentes -
-o conhecer, porém, não se conhece nunca.
Apenas resta a escolha: como descobrir
essa experiência inútil. Antes, pois,
correr do mundo as terras e os humanos
que consumir-se alguém ao lado deles sempre."

in Visão Perpétua

For the days we care about



domingo, 4 de março de 2012

Manuel de Freitas (4)

September Song

"Ouve, pelo começo de Setembro,
o clamor e a melancolia
deste mar atravessando a tua vida,
as páginas de um livro por abrir.

Ouve como quem vê,
sobre as falésias deste mês abrupto,
alguém que te celebra
muito depois das palavras.

É tão difícil escrever um poema
que não fale de morte."

in Intermezzi, Op.25, Opera Omnia

quinta-feira, 1 de março de 2012

Nuno Júdice (5)

Fumo

"A luz da manhã limpou as sombras da noite,
num gesto de vassoura, atenta e rápida.
Agora, tudo é suave e transparente, como
o frio seco que sacode os pássaros e as folhas.

Passo neste mundo natural que a manhã
me oferece; e só falta um fio de fumo
dessas cinzas em que o dia aquece as mãos,
enquanto o vento não sopra a apagá-las.

Dia e noite juntam-se nesse fumo
em que o céu respira; e a sua linha
desenha no ar uma frágil fronteira.

Para um lado, o espaço sem limites
em que tudo premanece; para aqui, o breve
sentimento do eterno, antes que o fumo se dissipe."

in O Breve Sentimento do Eterno, Edições Nelson de Matos

Qué quieres que te cante