terça-feira, 30 de agosto de 2011

Sentir


Patrick Suskind


"Um pânico de morte: é assim, sem dúvida, como na hora teria descrito este momento, mas tal não correspondia à verdade, pois o medo apenas surgira mais tarde. Tratava-se antes de uma estupefacção de morte.
Durante uns cinco, talvez dez segundos - a nível pessoal pareceram-lhe eternos -, manteve-se com a mão na maçaneta, o pé levantado para dar o primeiro passo, como se tivesse ficado na ombreira da porta, sem poder avançar nem recuar. Seguiu-se um pequeno movimento. Fosse porque a pomba mudou de apoio de uma pata para a outra ou porque se sacudiu um pouco, a verdade é que de qualquer maneira um leve estremecimento lhe percorreu o corpo e ao mesmo tempo duas pálpebras se fecharam com um ruído seco sobre o olho, uma por baixo e outra por cima, sem que se tratassem realmente de verdadeiras pálpebras mas antes de quaisquer batentes em borracha e que engoliram o olho como dois lábios surgidos do nada. Por um momento desapareceu. E só então é que o medo assaltou Jonathan e lhe pôs os cabelos em pé."

domingo, 21 de agosto de 2011

A livreira (9)


Hoje percebi porque cantam os pássaros. 
A livreira não encontra forma de explicar a experiência que teve.
E digo que não existem palavras, frases nem livros que possam descrever algo assim. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Gao Xingjian


O templo


"Nadávamos numa felicidade perfeita, no desejo, no amor louco, na ternura e na doçura da viagem de núpcias que se seguira ao nosso casamento, embora só tivéssemos quinze dias de férias: dez dias concedidos para a ocasião e uma semana de férias normais. O casamento é uma questão para toda a vida, para nós nada poderia ser mais importante, como poderíamos não ter pedido alguns dias suplementares? Mas o meu chefe, tão avarento, regateava quase ao centavo cada vez que alguém pedia férias, era duro. Inicialmente, na autorização estava assinalada uma dispensa de duas semanas, mas ele transformara-a numa semana, e depois dissera-me um pouco embaraçado: "Espero que possa voltar a tempo". - "Certamente, certamente, respondera eu, o nosso pequeno salário não nos permitirá demorar a viagem." Então ele acabou por assinar de uma penada. As férias foram concedidas.
A partir daí deixava de ser solteiro. Tinha uma família. De facto tinha combinado esta viagem com Fangfang há muito tempo. A partir de agora, constituíamos uma família, já não poderia, ao receber o meu salário no princípio do mês, ir ao restaurante, convidar amigos, gastar à vontade e chegar ao fim do mês sem tostão, sem poder sequer comprar um maço de cigarros, obrigado a procurar nas algibeiras ou a virar gavetas para desencantar alguns trocos. É melhor nem falar nisso. Dizia que estávamos felizes. De facto, a felicidade é bastante rara na nossa vida tão curta."

domingo, 7 de agosto de 2011

And I think my head is burning And in a way I'm yearning


Milan Kundera


"Oh, como se passara tudo ao contrário do que ela quisera! Sonhara morrer misteriosamente. Fizera tudo para que ninguém pudesse saber se a sua morte fora um acidente ou suicídio. Quisera enviar-lhe a sua morte como sinal secreto, um sinal de amor vindo do além, só para ele compreensível. Fora tudo bem previsto excepto, talvez, o número de soníferos, excepto, talvez, a temperatura que, enquanto ela adormecia, subira. Pensara que o gelo a ia mergulhar no sono e na morte, mas o sono era demasiado fraco; abrira os olhos e vira o céu negro.
Os dois céus tinham dividido a sua vida em duas partes: o céu azul, o céu negro. Era sob este outro céu que ia em direcção à sua morte, a sua verdadeira morte, a morte longínqua e trivial da velhice. 
E ele? Ele vivia sob um céu que para ela não existia."

A livreira (8)

No meio do seu mundo de livros, a livreira, procura respostas.
As respostas não surgem. O tempo não pára, segue célere. 

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

I will rest my stupid head

Julio Ramón Ribeyro



89


"Durante dez anos vivi emancipado do sentido da propriedade, da profissão, da família, do domicílio, e viajei pelo mundo com uma mala cheia de livros, uma máquina de escrever e um gira-discos portátil. Mas era vulnerável e cedi a sortilégios tão antigos como a mulher, o lar, o trabalho, os bens. Foi assim que criei raízes, escolhi um lugar, o ocupei e comecei a povoá-lo de objectos e presenças. Primeiro de alguém a quem amar, depois do que este ser desejasse, em seguida dos adereços: uma cama, uma cadeira, um quadro, um filho. Mas tratou-se apenas do princípio, pois todos começamos por ser recolectores, tornamo-nos coleccionadores e acabamos como mais um elo da cadeia infinita de consumidores. De modo que, estando já velhos e gastos para o desfrute, vemo-nos circunscritos pelas coisas. Livros que não queremos ler, discos que não temos tempo de ouvir, quadros que não nos apetece contemplar, vinhos que nos fazem mal, cigarros que estamos proibidos de fumar, mulheres que nos falta a força para amar, recordações a que não queremos voltar, amigos para quem não temos perguntas e experiências que não há maneira de aproveitar. O tardio, o supérfluo  o que antes era cobiçado, amontoa-se em torno de nós, organiza-se naquilo a que poderíamos chamar de casa, mas tão-só quando já estamos a despedir-nos de tudo, pois esta vida cumulativa acaba por se edificar no umbral da nossa morte."

João Luís Barreto Guimarães (2)

1 de Agosto

"Escolhi um lugar à sombra nas mesas da esplanada. Uma pastilha elástica secou sob o tampo da mesa.
Não apetece escrever. A sombra resiste ao sol que vem lentamente a crescer, acendendo-a imperceptível centímetro após centímetro. Eu, que escolhera lugar escondido do sol de Agosto, brevemente me verei sem ter que me mudar, molhado pelo calor do Verão.
Talvez uma ideia então, ilumine esta caneta a tempo de salvar o poema." 

in Lugares Comuns 
Mariposa Azual