terça-feira, 22 de novembro de 2011

...sente...

Aldous Huxley


"Entraram. O ar parecia quente e sofucante, de tal maneira estava carregado pelo perfume de âmbar cinzento e de sândalo. No tecto em cúpula da sala, o órgão de cores tinha momentaneamente pintado um pôr-de-sol tropical. Os dezasseis saxofonistas tocavam um motivo popular: Não Há No Mundo Que Nos Rodeia Outra como tu, Proveta Amada. Quatrocentos pares dançavam um five-step sobre o chão encerado. Lenina e Henry depressa se tornaram no par quatrocentos e um. Os saxofones gemeram como gatos melodiosos ao luar, lamuriaram nos registos alto e tenos como se estivessem desmaiando. Aumentado por uma riqueza prodigiosa de harmónicas, o seu coro balbuciante subia para uma altura mais sonora, sempre mais sonora, até que, por fim, com um gesto da mão, o chefe da orquestra desencadeou a nota final no fragor retumbante de música de ondas, expulsando de toda a existência os dezasseis assopradores simplesmente humanos. Tempestade em lá bemol maior. E então, quase um silêncio, numa meia obscuridade, seguiu-se um abaixamento gradual, em diminuendo descendente, deslizando gradualmente, em quartos de tom, até ao acorde de dominante fracamente murmurado, que se arrastava ainda (enquanto os ritmos de cinco-quatro continuavam os seus compassos no contrabaixo), carregando os obscurecidos segundos com uma intensa espera. E, enfim, a espera foi satisfeita." 

domingo, 13 de novembro de 2011

Simone de Beauvoir


“Hélène abriu os olhos; ele tomou-a nos braços. Aqueles olhos abertos já não viam. Hélène! Já não ouvia. Qualquer coisa permanece que não está ainda ausente de si própria, mas está já ausente da terra, ausente de mim. Estes olhos são ainda um olhar, um olhar congelado que já não é olhar de nada. A respiração parou. Ela tinha dito: Estou contente por estares aí; mas eu não estou aí; sei que se passa qualquer coisa, mas é algo a que não posso assistir; algo que não se passa nem aqui nem noutro lado: para além de toda a presença. Ela respirou uma vez ainda; os olhos velaram-se-lhe; o mundo separa-se dela, o mundo afunda-se; e entretanto ela não está a deslizar para fora do mundo; é no interior do mundo que ela se transforma nesta morta que tenho nos braços. Um esgar repuxa-lhe o canto dos lábios. Já não há o seu olhar. Ele desceu-lhe as pálpebras nos olhos inertes. Querido rosto, querido corpo. Era a tua fronte, eram os teus lábios. Deixaste-me, mas posso ainda amar a tua ausência; a ausência conserva a tua cara; aí está a tua figura ainda; presente nessa forma imóvel. Fica; fica comigo…”

sábado, 12 de novembro de 2011

João Luís Barreto Guimarães (3)



‎"por favor fala mais alto (deve estar
alguém na linha) eu tenho os cabelos
brancos tu: a pele muito macia. a
solidão ao comprido é como quem joga

com dez (qualquer desculpa é desculpa
para esquecer o comprimido). ato um fio
no dedo para não esquecer a alegria

há aves cegas que cantam para fingir
companhia (segunda sexta domingo terça
sábado quinta) há de tudo nesta idade:

desde o deserto à mentira. por favor
fala mais alto (está decerto alguém
na linha) talvez seja a primavera nas
patas de uma andorinha"



‎"apetece por vezes com os dias morrer por um pequeno
instante e deixar os fogos soltos na areia: acrescentar
água à face e perturbar os sentidos em busca da única
luz ou então sentar os movimentos e escrever a uma


amiga. dizer assim como quem fala: que espécie rara
de deus é o teu? a vida é ficar abraçado às dunas
apenas se há dois braços de areia por quem sonhar.


vir então aos poucos contando os mastros do verão
cumprindo o desejo das cartas de mar e assim
mesmo confundir todos os relógios da rota só
para ter mais tempo para ficar. o resto é saber o


alfabeto de cor até ao fim até que as palavras vão
nascendo devagar para ser: sonho no sono dos dias
ou ser sono dentro de mim"




"Abro o caderno e escrevo que estou a escrever no caderno.
Por vezes a escrita dói, a tinta escorre e faz-se sangue, haver duas
palavras amigas a pairar sobre o poema e ao soar da caneta só
uma poder ter lugar.
Um rosto molhado aparece acenando pelo lado da chuva.
Gesticula a pergunta se me encontro a escrever. Sorrio, aquiescendo .
Deixa ficar um adeus e avança sobre os charcos, sem se ter apercebido
de que fiquei a escrever sobre isso, sobre aquele gesto dele, no fundo a escrever
sobre ele.
Não tivesse tocado no vidro, não teria entrado no poema."


A meias
"Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo um cigarro e tu fumas
do meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu.
Dá-te gozo esse roubar de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo 
a meias."


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

João Ricardo Lopes (3)


Caixa de Tabaco 


"devagar os dedos tacteiam
as vísceras ao tempo


moedas, selos, cartas, uma
coleção de antigos retratos, vida
tão de nós como não nossa
tão de nós como de uma
personagem outrora no teatro


devagaro óxido da caixa 
anos-luz de viagem, quer dizer
de existência – quer dizer
a máscara após máscara com
que nos mira, sabe-se lá
de onde, o não-rosto que nos
mira


moedas, selos, cartas – quer
dizer a memória, quer dizer nós
embaulados algures no cosmo
na pele, no odor acre do tabaco


moral da história: devolvemos
o conteúdo ao silêncio e sempre
a nós próprios regressamos"


para a Marta Peixoto




a livreira confessa que até tem o coração amarfanhado, é por estas coisas que vale a pena viver no meio do papel. 
o belo poema foi retirado aqui

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Desassossego (8)

 "Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.


     É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.


     Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.


     Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir."


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

There is no cure For what I feel

Julio Ramón Ribeyro (2)

82
"Às vezes corro as cortinas e lanço um olhar ávido ao mundo, interrogo-o, mas não recebo nenhuma mensagem, salvo a do caos e da confusão: automóveis circulando, peões atravessando a praça, lojas acendendo as luzes, escavadoras sulcando um terreno baldio, pássaros errantes procurando um remanso no bulício. São os dias nefandos, nos quais nada conseguimos desvendar, pois a nossa consciência está excessivamente toldada pela razão e os nossos olhos embaciados pela rotina. Limpar ambos do que os embaraça não é tarefa fácil. Umas vezes conseguimo-lo mediante um esforço de concentração, outras acontece naturalmente, graças a um trabalho interior no qual não tivemos uma participação deliberada. Só então a realidade entreabre as suas portas e podemos visualizar o essencial."

in Prosas Apátridas
Ahab

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Edgar Allan Poe

"Tu eras para mim, amor, amor sem par,
Tudo o que a alma vivia desejando:
Uma ilha verde, amor, em pleno mar,
Minha fonte e sacrário, e isto ornado
De frutos e de flores de encantar,
E era eu só que das flores tinha o mando.

Sonho ardente de mais para durar!
Ah, Esperança estrelada, só nascida
Para um dia mais tarde se toldar!
Do futuro essa voz se fez ouvida:
«Segue em frente» - mas somente o Passado
(Triste abismo!) o meu espírito convida
E deixa mudo, imóvel, aterrado!

Porque, ai, para o meu ser, ultimamente,
Da vida o lume quis apagado.
«Não mais, não mais, não mais (diz, impotente,
O mar solene, vendo do outro lado
A areia que na praia lhe faz frente)
Há-de dar fruto o tronco fulminado,
Ou a águia ferida ergue-se novamente.

É puro transe agora o meu viver
E os sonhos que de noite me atormentam
São onde os olhos teus procuram ver
E onde os saudosos passos teus inventam
Etéreas danças que me é dado entrever
Nas margens que na Itália se adormentam.

Pobre de mim, que um dia malfadado
De mim te arrebataram, mas afora,
Trocando Amor por título aviltado,
E num profano leito estás agora,
Longe das brumas nossas, do meu lado,
Onde o salgueiro de prata agora!"

in O Encontro

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

António Barahona




Soneto Vívido
"O meu amor por ti assombra os astros
da noite escassa para o nosso amor.
Soneto vívido de versos castos,
no desgaste da boca um som de flor.


E, no engaste do teu sexo, uma rima
a completar corpo comum de dois,
substantivo ou canção que nos ensina
a fabricar ba pele ethéreos sóis.


Nas mãos, ainda, a ternura extensa,
certeira se dilui nos alvos rubros
e o riso se pratica a comer uvas.


O meu amor por ti marca presença:
dormimos virgens, e os teus ombros cubro-os,
temendo, deste inverno, as ígneas chuvas."



Silêncio
"Silêncio é uma palavra impossível.
Não corresponde a nenhuma realidade.
Não há silêncio no cosmos
nem em cada um de nós.
Numa sala sem eco,
entre paredes de cimento isolante,
ouve-se ecoar a circulação
do nosso próprio sangue."


O Jejum
"Os dias e as noites adquirem uma nitidez deslumbrante. As horas regressam à sua etimologia e constituem, de facto, de fato novo, orações."


Reconstrução
"Reconstruir o pensamento religioso
em cada gesto,
em cada acto do quotidiano:
de tudo, até ao mais ínfimo,
ter a consciência do seu todo.


Reconstruir a harmonia com o cosmos
à custa da dissonância nos versos
e da distância que se move os remos.


Reconstruir a estrada sobre a água
pra navegar em direcção ao fogo
do nosso amor plo mundo, que naufraga.


Reconstruir a vida pra nascer de novo."

*Fotografia "roubada" aqui

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Flaubert (3)


Um coração simples
"Levantava-se o alvorecer, para não faltar à missa, e trabalhava até o fim da tarde sem interrupção; depois, acabado o jantar, com a loiça em ordem e a porta bem fechada, enterrava a acha de lenha debaixo das cinzas e adormecia diante da lareira, de rosário na mão. Ninguém era mais obstinada a regatear preços. Quanto a asseio, o brilho das suas caçarolas fazia o desespero das outras criadas. Poupada que era, comia devagarinho e recolhia a dedo de cima da mesa as migalhas do seu pão - um pão de doze libras, cozido expressamente para ela, e que durava vinte dias. 
Usava durante todo o ano um lenço de chita preso nas costas por um alfinete, uma touca que lhe tapava o cabelo, meias cinzentas, saia encarnada e, por cima da camisa larga, um avental de peitilho como as enfermeiras do hospital.
Tinha uma cara magra e voz aguda. Aos vinte e cinco davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta deixou de ter idade; e, sempre silenciosa, de figura inteiriça e gestos medidos, parecia feita de madeira, a funcionar automaticamente."

terça-feira, 1 de novembro de 2011

(embalar a alma)

Álvaro de Campos (2)

Acordar


"Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 
Acordar da Rua do Ouro, 
Acordar do Rocio, às portas dos cafés, 
Acordar 
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 


Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo. 
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se 
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma, 
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 


Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, 
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste, 
Seja 


A mulher que chora baixinho 
Entre o ruído da multidão em vivas... 
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 
Cheio de individualidade para quem repara... 
O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 
Tudo isto tende para o mesmo centro, 
Busca encontrar-se e fundir-se 
Na minha alma. 


Eu adoro todas as coisas 
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 
Tenho pela vida um interesse ávido 
Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 
Para aumentar com isso a minha personalidade. 


Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 
E a minha ambição era trazer o universo ao colo 
Como uma criança a quem a ama beija. 
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 
Do que as que vi ou verei. 
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 


Dá-me lírios, lírios 
E rosas também. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também, 
Crisântemos, dálias, 
Violetas, e os girassóis 
Acima de todas as flores... 


Deita-me as mancheias, 
Por cima da alma, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 


Meu coração chora 
Na sombra dos parques, 
Não tem quem o console 
Verdadeiramente, 
Exceto a própria sombra dos parques 
Entrando-me na alma, 
Através do pranto. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 


Minha dor é velha 
Como um frasco de essência cheio de pó. 
Minha dor é inútil 
Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 
E minha dor é silenciosa e triste 
Como a parte da praia onde o mar não chega. 
Chego às janelas 
Dos palácios arruinados 
E cismo de dentro para fora 
Para me consolar do presente. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 


Mas por mais rosas e lírios que me dês, 
Eu nunca acharei que a vida é bastante. 
Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 
Sobrar-me-á sempre de que desejar, 
Como um palco deserto. 


Por isso, não te importes com o que eu penso, 
E muito embora o que eu te peça 
Te pareça que não quer dizer nada, 
Minha pobre criança tísica, 
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também..."

James Joyce


"Não havia fuga possível Tinha que confessar-se, que explicar por palavras o que tinha feito e pensado, pecado a pecado. Como? Como?
- Padre, eu...
O pensamento penetrou como uma espada fria e brilhante na sua carne tenra: confissão. Mas não ali, na capela do colégio. Confessaria todo e cada pecado dos seus actos e pensamentos, com sinceridade; mas não ali, entre os seus companheiros. Longe dali, num local escuro, murmuraria a sua própria vergonha; e suplicou humildemente a Deus que não se ofendesse por ele não ousar confessar-se na capela do colégio e, numa total abjecção do espírito, implorou silenciosamente o perdão daqueles corações juvenis que o rodeavam. 
O tempo passou. Estava novamente sentado no primeiro banco da capela. A luz do dia, lá fora, já começava a declinar-se e, à medida que descia lentamente pelas persianas vermelhas, parecia que se punha o sol do último dia e que todas as almas estavam a ser arrebanhadas para o julgamento."

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Fiódor Dostoievski


‎"Mas a catástrofe ocorreu oportunamente. Ao suportar o revólver, vinguei-me de todo o meu sombrio passado. E embora ninguém tenha sabido disso, ela soube-o e isso para mim era tudo, porque ela própria era tudo para mim, toda a esperança do meu futuro nos meus sonhos! Ela era a única pessoa que eu preparava para mim e não precisava de mais ninguém - e ela ficara a saber de tudo; ela ficara a saber, ao menos, que se apressara injustamente a juntar-se aos meus inimigos. Este pensamento encantava-me. Aos olhos dela eu não podia ser já um canalha, quando muito um homem estranho, mas até esse pensamento já não me desagradava assim tanto, agora, depois de tudo o que tinha acontecido: ser estranho não é um defeito, pelo contrário, por vezes até seduz o carácter feminino."

Albert Cossery


‎"Cada vez que olhava para aquela paisagem, sentia-se invadido por uma intensa felicidade, como se um destino sagaz lhe tivesse concedido o privilégio de ser a única e insaciável testemunha. Esse delicioso sentimento de orgulho tinha origem numa realidade concreta; com efeito, por todo o lado no resto do mundo, aquela calma encantatória e aquela imutável doçura não passavam de uma lembrança. Por todo o lado no resto do mundo, o despotismo industrial tinha degradado os comoventes espaços da natureza e foi por pouco que aquela paisagem não se transformou também ela numa zona infectada. Para o provar, bastava virar a cabeça para identificar por entre a bruma do calor - cravada no deserto como uma estátua erguida em nome do absurdo - a estrutura metálica de uma torre petrolífera a apodrecer ao sol."

Desassossego (7)

 "Nos primeiros dias do outono subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa prematura, e parece que tardámos muito no que fazemos de dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a própria sombra traz consigo, por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de trabalhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.
     Somos todos escravos de circunstâncias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viela; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se repousar."

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

...

Mariano Peyrou



"Pouco mais do que este conhecimento,
inútil porque não o podemos transportar.
Dias e o descuido que associamos 
à generosidade. Várias maneiras de o medir:
com alfinetes, com nomes próprios, com dias.


A fidelidade é ampla e mal iluminada,
sobressaí o óbvio, importa
o indemonstrável. Seria bom que desses a tua opinião."




‎"Tudo se torna signo, alarme
perante o excesso de númeno, solavanco
até ao remoinho sensorial,
a víscera latente e por vezes
manifesta limita-se hoje às suas funções
mais prosaicas. Resumo de eufemismos: o amor
é metáfora de sexo tal como Deus é metáfora
das dúvidas transcendentes e por vezes também
físicas, recordemos em todo o caso o sol
e a chuva, o que equivale a desejar
consciência do seu canto nas sereias
que apesar das minhas meditações hermenêuticas
continuaram a trabalhar e sabem contrapor 
algo desejável. Sonhas,
logo existem."

Eugénio de Andrade

Adeus


"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.


Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.


Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.


Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.


Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.


Adeus."


                         

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Living in a movie Twisting the plot

Telhados de Vidro (8)


"O inferno não está antes da memória do amor. É um lugar sem apelo; só a nossa reverência o vislumbra e respeita, em símbolos que dele traçam uma distância, um temor, quem sabe se não uma saudade? Ninguém vai para o inferno por lapso, por distracção, porque está de acordo ou desacordo, porque se tornou sentido obrigatório. De vertigem em vertigem, vai-se perdendo o passo. E fica-se cego.


Ou então, em vez das pedras, as dunas e os cães abandonados. Ficar ali suspenso sobre o mar. Ali, onde a caixa branca não existia, porque o infinito lhe apagava os contornos e tudo se reunia num enlace mais forte que a morte e a vida. Não precisou de roubar a noite. Criou a noite. A lua sobre a música. A nuvem passa, vagamente, indefinida. E repete-se o passar, a tensão. Aquela nuvem, estes olhos, esta tinta. Até ser música e ter havido um pretexto. A vida nunca dava um romance. nem uma lição. Ou um crime. Nada a declarar. Os vidros, as lâminas, atravessam-lhe a memória e tingem-se de sol. Ilegível essa mistura da noite com o sol."


Silvina Rodrigues Lopes


*Telhados de vidro nº3 da (fabulosa) Averno

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Elfriede Jelinek


"Erika domina-se até já não sentir uma única pulsão dentro de si. Suspende a existência do seu corpo porque não há ninguém que lhe salte ao caminho, qual pantera, e lhe arrebate o corpo. Ela espera e emudece. Exige do corpo a execução de impiedosas tarefas e ainda consegue elevar a seu bel-prazer o grau de dificuldade, através de armadilhas dissimuladas. Jura a si própria que as pulsões qualquer um as pode seguir, mesmo o ser primitivo, que não se coíbe de as satisfazer ao ar livre. (...)
Nas vitrinas do Cinema Metro acocora-se entretanto a carne descarada a carne rósea nas suas variadas formas, apresentações e categorias de preço. Prolifera e transborda, porque Erika neste momento não pode fazer guarda diante do cinema. O preço dos lugares sentados é normalizado, à frente é mais barato do que atrás, embora a frente se esteja mais perto e se possa ver melhor pelo corpo dentro. Numa mulher escarafuncham unhas extra-longas pintadas de vermelho sangue, na outra escarafuncha por seu lado um objecto esguio que é um chicote de montar. Ela escava um buraco na carne e mostra ao observador quem manda aqui e quem não manda, e também o observador se sente a mandar. Erika experimenta directamente na sua carne aquele escarafunchar, este indica com ênfase o seu lugar no lado dos espectadores. O rosto de uma das mulheres contorce-se de gozo, porque, é claro, o homem só pode saber através da expressão dela quanto prazer lhe está a dar e quanto prazer se desperdiçou, inutilizado."

Breat Easton Ellis


"O escritório do meu pai fica em Century City. Espero por ele, sentado na espaçosa recepção, mobilada com luxo, conversando com as secretárias e namoriscando uma loira excepcionalmente bonita. não me chateia o facto de o meu pai me ter feito esperar meia hora enquanto estava numa reunião, e depois perguntar por que é que cheguei atrasado. Na verdade, hoje não me apetece ir almoçar fora; preferia estar na paria ou a dormir junto à piscina, mas presto-me a tudo como um menino bonito, sorrio e digo que sim a tudo, fingindo que estou a ouvir as perguntas que me faz acerca da Faculdade e respondo com toda a sinceridade. Não fico muito embaraçado quando, a caminho do Ma Maison, ele desce a capota do 450 e põe uma cassete do bob Seger, numa tentativa insólita de estabelecer qualquer espécie de comunicação. Também não me chateia que durante o almoço o meu pai fale com vários homens de negócios, pessoas com quem tem contactos na indústria cinematográfica, que passam junto à nossa mesa e a quem sou apresentado apenas como «o meu filho». A certa altura os homens de negócios parecem-se todos uns com os outros, e começo a desejar ter trazido o resto da coca."

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Despite these silent mysteries and certain violent cuts

Flannery O'Connor


"Deteve-se ali, esforçando a vista para a frente, mas o espectáculo desvaneceu-se nas trevas que se iam reunindo. A noite caiu até nada restar além de um fino fio vermelho entre ela e a linha preta da terra, mas, mesmo assim, o rapaz ficou ali. Não mais sentia a sua fome como uma dor, mas sim como uma maré. Sentia-a encher-se dentro de si através dos tempos e das trevas, crescendo ao longo dos séculos, e sabia que crescia numa linha de homens cujas vidas haviam sido eleitas para suportá-la, que estavam fadados a perderem-se pelo mundo, estranhos oriundos daquela terra violenta onde o silêncio nunca se desfaz excepto para se bradar a verdade. Sentia-se aumentar desde o sangue de Abel até ao seu, erguendo-se para engoli-lo. Parecia no mesmo instante levantar-se e volver-se dentro dele. Rodopiou em direcção ao recorte do arvoredo. Ali, subindo e espalhando-se na noite, uma árvore auri-rubra de fogo ascendeu como se fosse consumir as trevas numa só tremenda explosão de chamas. O bafo do rapaz saiu ao encontro dela. Sabia ter sido este o fogo que cercara Daniel, que levantara Elias do chão, que falara a Moisés, e iria dentro de instantes dirigir-se a si. Lançou-se contra o chão e, com  o rosto rente à terra da campa, ouviu as palavras de ordem. IDE AVISAR OS FILHOS DE DEUS DA TREMENDA URGÊNCIA DA MISERICÓRDIA. As palavras eram tão silenciosas como sementes a abrirem-se uma a uma no seu sangue."

Thomas Mann


"Era vontade de viajar, nada mais; mas uma vontade que o atacava, atingindo proporções dolorosas, quase de alucinação. A sua ânsia tornou-se visionária, a imaginação, animada ainda pelas horas de trabalho, recriou de uma só vez todas as maravilhas e horrores da Terra: e viu, viu uma paisagem tropical sob um céu espesso, um pântano húmido, opulento e insalubre, um ermo primitivo de ilhotas, pauis e rios de lodo - viu os braços peludos de palmeiras erguerem-se ao longe e de perto por entre a vegetação luxuriante, por entre o solo coberto de plantas que brotavam carnudas, desmedidas e aventureiras, viu árvores estranhamente amorfas com raízes que se desprendiam do tronco e atravessavam o ar para se afundarem na terra ou nas águas estagnadas, onde entre reflexos esverdeados flutuavam enormes flores brancas como leite, grandes como pratos, e pássaros exóticos, com asas em corcunda, bicos informes e pernas altas, olhavam imóveis para o lado, viu por entre as hastes nodosas de um canavial a faísca fosforescente dos olhos de um tigre - e sentiu o coração palpitar de terror, um desejo indecifrável. Depois a visão dissipou-se; e com um leve estremecer da cabeça, Aschenbach retomou o seu caminho ao longo das cercas das marmorarias." 

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Pagan Poetry

John Fante (2)


"Mas Maria, perdida no mundo de fantasia das revistas femininas, fitando entre suspiros as imagens de fogões e ferros de engomar eléctricos, de aspiradores e máquinas de lavar automáticas, só tinha de fechar a revista e olhar em seu redor: as cadeiras duras, os tapetes puídos, as salas frias. Só tinha de examinar as palmas da mãos, calejadas pela tábua de lavar, para compreender que não era, no fim de contas, uma mulher americana. Nada nela, nem a pele, nem as mãos, nem os pés, nem a comida que comia ou os dentes com que mastigava, nada, absolutamente nada, a fazia sentir qualquer ligação às «mulheres americana».
No fundo, Maria não precisava de livros nem revistas. Tinha o seu próprio meio de evasão, o seu caminho privado para a satisfação: o rosário. Aquela fiada de contas brancas, os minúsculos elos gastos em alguns pontos e unidos por fios de linha branca que por sua vez se rompiam com frequência, era, conta após conta, o seu modo discreto de escapar ao mundo. Ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco. E Maria seguia o rosário. Conta após conta, a vida e os vivo ficavam para trás. Mergulhava num sonho acordado, embalada por uma paixão sem corpo, por um amor eterno que entoava a melodia da crença. Maria estava longe; era livre, já não era a Maria, americana ou italiana, pobre ou rica, com ou sem máquinas de lavar automáticas e aspiradores eléctricos; chegara à terra de todos os bens. Ave Maria, Ave Maria, interminavelmente, mil e cem mil vezes, oração a oração, o corpo adormecido, o espírito ausente, a morte da memória, o refrigério da dor, o profundo e silencioso devaneio da fé. Ave Maria, Ave Maria. Era a razão da sua vida." 

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

José Ángel Cilleruelo (2)

Balada de Seteais



"Não há ninguém que baile para ti?
Ninguém que por ti diga a melhor
é sempre a primeira vez, não há
ninguém que ao semicerrar os olhos
te inclua dentro? Pouco importa,
iguais vão suceder-se os dias
como soldados num domingo
vitorioso. Não há ninguém que viva
para ti? Assim é como começaste.
Ainda te faltam coisas para descobrir,
pensa nisso, entre os dias encontrarás
o sossego que detenha a tua vida
e nessa altura, que não baile
para ti não passará de uma borra
no fundo do copo que bebes até ao fim."


*Da (fabulosa) Averno

The salty sea behind the eyes

Jorge de Sena


"Como queiras, Amor, como tu queiras. 
Entregue a ti, a tudo me abandono, 
seguro e certo, num terror tranquilo. 
A tudo quanto espero e quanto temo, 
entregue a ti, Amor, eu me dedico. 


Nada há que eu não conheça, que eu não saiba, 
e nada, não, ainda há por que eu não espere 
como de quem ser vida é ter destino. 


As pequeninas coisas da maldade, a fria 
tão tenebrosa divisão do medo 
em que os homens se mordem com rosnidos 
de malcontente crueldade imunda, 
eu sei quanto me aguarda, me deseja, 
e sei até quanto ela a mim me atrai. 


Como queiras, Amor, como tu queiras. 
De frágil que és, não poderás salvar-me. 
Tua nobreza, essa ternura tépida 
quais olhos marejados, carne entreaberta, 
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso 
em lábios que se fecham como olhares de raiva. 
Não poderás salvar-me, nem salvar-te. 
Apenas como queiras ficaremos vivos. 


Será mais duro que morrer, talvez. 
Entregue a ti, porém, eu me dedico 
àquele amor por qual fui homem, posse 
e uma tão extrema sujeição de tudo. 


Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras." 


Jorge de Sena

Desassossego (6)

 "Há um sono da atenção voluntária, que não sei explicar, e que frequentemente me ataca, se de coisa tão esbatida se pode dizer que ataca alguém. Sigo por uma rua como quem está sentado, e a minha atenção, desperta a tudo, tem todavia a inércia de um repouso do corpo inteiro. Não seria capaz de me desviar conscientemente de um transeunte oposto. Não seria capaz de responder com palavras, ou sequer, dentro em mim, com pensamentos, a uma pergunta de qualquer casual que fizesse escala pela minha casualidade coincidente. Não seria capaz de ter um desejo, uma esperança, uma coisa qualquer que representasse um movimento, não já da vontade do meu ser completo, mas até, se assim posso dizer, da vontade parcial e própria de cada elemento em que sou decomponível. Não seria capaz de pensar, de sentir, de querer. E ando, sigo, vagueio. Nada nos meus movimentos (reparo por o que os outros não reparam) transfere para o observável o estado de estagnação em que vou. E este estado de falta de alma, que seria cómodo, porque certo, num deitado ou num recumbente, é singularmente incómodo, doloroso até, num homem que vai andando pela rua.
     É a sensação de uma ebriedade de inércia, de uma bebedeira sem alegria, nem nela, nem na origem. É uma doença que não tem sonho de convalescer.
     É uma morte alacre."

Bernardo Soares (Frenando Pessoa)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

I'll close my eyes Then I won't see

Cormac McCarthy (3)


"Descreveu um círculo e regressou, sem nada encontrar. Por fim, cruzou o afluente e desceu ao longo da margem mais distante e logo deparou de novo com pegadas. Seguiu-as até uma pequena clareira, onde os rastos cessavam. Olhou em volta. Parecia ser o mesmo lugar onde as pegadas que subiam pela margem mais próxima haviam desaparecido. Como se aquele que as traçara tivesse encontrado naquela floresta um qualquer alter ego tenebroso com quem se fundira em harmonia química, eclipsando-se da terra sem deixar vestígio. Foi então que ouviu o menino a chorar. Voltou-se com um vago sorriso entre as suíças hirsutas e ásperas. Encontrou-o no outro extremo da clareira, num cálice de musgo, nu e a chorar em surdina, não muito mais alto que um gatinho.
Bem, bem, comentou, ajoelhando-se, és um belo resmungão, pra um pobre diabo como tu. Apalpou o corpito com um dedo estendido, como se fosse um tomate ou um melão. És filhinho das tristes ervas, não é verdade? Parece que alguém queria que tu acabasses os teus dias aqui no meio das brenhas.
Embrulhou a toalha em volta da criaturinha e apanhou-a do chão e, segurando-a contra o peitilho das jardineiras com um braço, começou a descer novamente ao longo da margem do regato."

domingo, 9 de outubro de 2011

(suspiro)

Daphne du Maurier (2)

Os Pássaros


"Ao voltar para casa no seu passo pesado através dos campos e pela azinhaga que levava à sua casa, Nat viu que os pássaros continuavam a formar bandos sobre as colinas a oeste, à luz dos derradeiros raios de sol. Não corria vento, e o mar cinzento estava calmo e cheio. Candelárias ainda em flor nas sebes e o ar ameno. Contudo, o lavrador tinha razão, e foi nessa noite que o tempo mudou. O quarto de Nat era virado a leste. Ele acordou pouco depois das duas e ouviu o vento na chaminé. Não a ventania e as rajadas súbitas de um temporal de sudoeste, que traz chuva, mas um vento de leste, frio e seco. Fazia eco na chaminé, e no telhado uma lousa solta batia. Nat pôs-se à escuta, e ouviu o mar a bramir na baía. Até no pequeno quarto o ar arrefecera: uma corrente de ar entrava por baixo da porta e ia directa à cama. (...)
Depois ouviu toques leves na janela. Não havia trepadeiras nas paredes da casa que se soltassem e roçassem nas vidraças. Ficou à escuta e as pancadinhas continuaram, até que, irritado com o som, saiu da cama e foi à janela. Abriu-a e, conforme o fez, qualquer coisa lhe aflorou ao de leve a mão, picando-lhe os nós dos dedos e arranhando a pele. Então viu o bater de asas, que logo desapareceu por cima do telhado, para trás da casa."