terça-feira, 22 de novembro de 2011

...sente...

Aldous Huxley


"Entraram. O ar parecia quente e sofucante, de tal maneira estava carregado pelo perfume de âmbar cinzento e de sândalo. No tecto em cúpula da sala, o órgão de cores tinha momentaneamente pintado um pôr-de-sol tropical. Os dezasseis saxofonistas tocavam um motivo popular: Não Há No Mundo Que Nos Rodeia Outra como tu, Proveta Amada. Quatrocentos pares dançavam um five-step sobre o chão encerado. Lenina e Henry depressa se tornaram no par quatrocentos e um. Os saxofones gemeram como gatos melodiosos ao luar, lamuriaram nos registos alto e tenos como se estivessem desmaiando. Aumentado por uma riqueza prodigiosa de harmónicas, o seu coro balbuciante subia para uma altura mais sonora, sempre mais sonora, até que, por fim, com um gesto da mão, o chefe da orquestra desencadeou a nota final no fragor retumbante de música de ondas, expulsando de toda a existência os dezasseis assopradores simplesmente humanos. Tempestade em lá bemol maior. E então, quase um silêncio, numa meia obscuridade, seguiu-se um abaixamento gradual, em diminuendo descendente, deslizando gradualmente, em quartos de tom, até ao acorde de dominante fracamente murmurado, que se arrastava ainda (enquanto os ritmos de cinco-quatro continuavam os seus compassos no contrabaixo), carregando os obscurecidos segundos com uma intensa espera. E, enfim, a espera foi satisfeita." 

domingo, 13 de novembro de 2011

Simone de Beauvoir


“Hélène abriu os olhos; ele tomou-a nos braços. Aqueles olhos abertos já não viam. Hélène! Já não ouvia. Qualquer coisa permanece que não está ainda ausente de si própria, mas está já ausente da terra, ausente de mim. Estes olhos são ainda um olhar, um olhar congelado que já não é olhar de nada. A respiração parou. Ela tinha dito: Estou contente por estares aí; mas eu não estou aí; sei que se passa qualquer coisa, mas é algo a que não posso assistir; algo que não se passa nem aqui nem noutro lado: para além de toda a presença. Ela respirou uma vez ainda; os olhos velaram-se-lhe; o mundo separa-se dela, o mundo afunda-se; e entretanto ela não está a deslizar para fora do mundo; é no interior do mundo que ela se transforma nesta morta que tenho nos braços. Um esgar repuxa-lhe o canto dos lábios. Já não há o seu olhar. Ele desceu-lhe as pálpebras nos olhos inertes. Querido rosto, querido corpo. Era a tua fronte, eram os teus lábios. Deixaste-me, mas posso ainda amar a tua ausência; a ausência conserva a tua cara; aí está a tua figura ainda; presente nessa forma imóvel. Fica; fica comigo…”

sábado, 12 de novembro de 2011

João Luís Barreto Guimarães (3)



‎"por favor fala mais alto (deve estar
alguém na linha) eu tenho os cabelos
brancos tu: a pele muito macia. a
solidão ao comprido é como quem joga

com dez (qualquer desculpa é desculpa
para esquecer o comprimido). ato um fio
no dedo para não esquecer a alegria

há aves cegas que cantam para fingir
companhia (segunda sexta domingo terça
sábado quinta) há de tudo nesta idade:

desde o deserto à mentira. por favor
fala mais alto (está decerto alguém
na linha) talvez seja a primavera nas
patas de uma andorinha"



‎"apetece por vezes com os dias morrer por um pequeno
instante e deixar os fogos soltos na areia: acrescentar
água à face e perturbar os sentidos em busca da única
luz ou então sentar os movimentos e escrever a uma


amiga. dizer assim como quem fala: que espécie rara
de deus é o teu? a vida é ficar abraçado às dunas
apenas se há dois braços de areia por quem sonhar.


vir então aos poucos contando os mastros do verão
cumprindo o desejo das cartas de mar e assim
mesmo confundir todos os relógios da rota só
para ter mais tempo para ficar. o resto é saber o


alfabeto de cor até ao fim até que as palavras vão
nascendo devagar para ser: sonho no sono dos dias
ou ser sono dentro de mim"




"Abro o caderno e escrevo que estou a escrever no caderno.
Por vezes a escrita dói, a tinta escorre e faz-se sangue, haver duas
palavras amigas a pairar sobre o poema e ao soar da caneta só
uma poder ter lugar.
Um rosto molhado aparece acenando pelo lado da chuva.
Gesticula a pergunta se me encontro a escrever. Sorrio, aquiescendo .
Deixa ficar um adeus e avança sobre os charcos, sem se ter apercebido
de que fiquei a escrever sobre isso, sobre aquele gesto dele, no fundo a escrever
sobre ele.
Não tivesse tocado no vidro, não teria entrado no poema."


A meias
"Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo um cigarro e tu fumas
do meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu.
Dá-te gozo esse roubar de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo 
a meias."


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

João Ricardo Lopes (3)


Caixa de Tabaco 


"devagar os dedos tacteiam
as vísceras ao tempo


moedas, selos, cartas, uma
coleção de antigos retratos, vida
tão de nós como não nossa
tão de nós como de uma
personagem outrora no teatro


devagaro óxido da caixa 
anos-luz de viagem, quer dizer
de existência – quer dizer
a máscara após máscara com
que nos mira, sabe-se lá
de onde, o não-rosto que nos
mira


moedas, selos, cartas – quer
dizer a memória, quer dizer nós
embaulados algures no cosmo
na pele, no odor acre do tabaco


moral da história: devolvemos
o conteúdo ao silêncio e sempre
a nós próprios regressamos"


para a Marta Peixoto




a livreira confessa que até tem o coração amarfanhado, é por estas coisas que vale a pena viver no meio do papel. 
o belo poema foi retirado aqui

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Desassossego (8)

 "Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.


     É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a consciência -, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.


     Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.


     Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir."


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

There is no cure For what I feel

Julio Ramón Ribeyro (2)

82
"Às vezes corro as cortinas e lanço um olhar ávido ao mundo, interrogo-o, mas não recebo nenhuma mensagem, salvo a do caos e da confusão: automóveis circulando, peões atravessando a praça, lojas acendendo as luzes, escavadoras sulcando um terreno baldio, pássaros errantes procurando um remanso no bulício. São os dias nefandos, nos quais nada conseguimos desvendar, pois a nossa consciência está excessivamente toldada pela razão e os nossos olhos embaciados pela rotina. Limpar ambos do que os embaraça não é tarefa fácil. Umas vezes conseguimo-lo mediante um esforço de concentração, outras acontece naturalmente, graças a um trabalho interior no qual não tivemos uma participação deliberada. Só então a realidade entreabre as suas portas e podemos visualizar o essencial."

in Prosas Apátridas
Ahab

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Edgar Allan Poe

"Tu eras para mim, amor, amor sem par,
Tudo o que a alma vivia desejando:
Uma ilha verde, amor, em pleno mar,
Minha fonte e sacrário, e isto ornado
De frutos e de flores de encantar,
E era eu só que das flores tinha o mando.

Sonho ardente de mais para durar!
Ah, Esperança estrelada, só nascida
Para um dia mais tarde se toldar!
Do futuro essa voz se fez ouvida:
«Segue em frente» - mas somente o Passado
(Triste abismo!) o meu espírito convida
E deixa mudo, imóvel, aterrado!

Porque, ai, para o meu ser, ultimamente,
Da vida o lume quis apagado.
«Não mais, não mais, não mais (diz, impotente,
O mar solene, vendo do outro lado
A areia que na praia lhe faz frente)
Há-de dar fruto o tronco fulminado,
Ou a águia ferida ergue-se novamente.

É puro transe agora o meu viver
E os sonhos que de noite me atormentam
São onde os olhos teus procuram ver
E onde os saudosos passos teus inventam
Etéreas danças que me é dado entrever
Nas margens que na Itália se adormentam.

Pobre de mim, que um dia malfadado
De mim te arrebataram, mas afora,
Trocando Amor por título aviltado,
E num profano leito estás agora,
Longe das brumas nossas, do meu lado,
Onde o salgueiro de prata agora!"

in O Encontro

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

António Barahona




Soneto Vívido
"O meu amor por ti assombra os astros
da noite escassa para o nosso amor.
Soneto vívido de versos castos,
no desgaste da boca um som de flor.


E, no engaste do teu sexo, uma rima
a completar corpo comum de dois,
substantivo ou canção que nos ensina
a fabricar ba pele ethéreos sóis.


Nas mãos, ainda, a ternura extensa,
certeira se dilui nos alvos rubros
e o riso se pratica a comer uvas.


O meu amor por ti marca presença:
dormimos virgens, e os teus ombros cubro-os,
temendo, deste inverno, as ígneas chuvas."



Silêncio
"Silêncio é uma palavra impossível.
Não corresponde a nenhuma realidade.
Não há silêncio no cosmos
nem em cada um de nós.
Numa sala sem eco,
entre paredes de cimento isolante,
ouve-se ecoar a circulação
do nosso próprio sangue."


O Jejum
"Os dias e as noites adquirem uma nitidez deslumbrante. As horas regressam à sua etimologia e constituem, de facto, de fato novo, orações."


Reconstrução
"Reconstruir o pensamento religioso
em cada gesto,
em cada acto do quotidiano:
de tudo, até ao mais ínfimo,
ter a consciência do seu todo.


Reconstruir a harmonia com o cosmos
à custa da dissonância nos versos
e da distância que se move os remos.


Reconstruir a estrada sobre a água
pra navegar em direcção ao fogo
do nosso amor plo mundo, que naufraga.


Reconstruir a vida pra nascer de novo."

*Fotografia "roubada" aqui

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Flaubert (3)


Um coração simples
"Levantava-se o alvorecer, para não faltar à missa, e trabalhava até o fim da tarde sem interrupção; depois, acabado o jantar, com a loiça em ordem e a porta bem fechada, enterrava a acha de lenha debaixo das cinzas e adormecia diante da lareira, de rosário na mão. Ninguém era mais obstinada a regatear preços. Quanto a asseio, o brilho das suas caçarolas fazia o desespero das outras criadas. Poupada que era, comia devagarinho e recolhia a dedo de cima da mesa as migalhas do seu pão - um pão de doze libras, cozido expressamente para ela, e que durava vinte dias. 
Usava durante todo o ano um lenço de chita preso nas costas por um alfinete, uma touca que lhe tapava o cabelo, meias cinzentas, saia encarnada e, por cima da camisa larga, um avental de peitilho como as enfermeiras do hospital.
Tinha uma cara magra e voz aguda. Aos vinte e cinco davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta deixou de ter idade; e, sempre silenciosa, de figura inteiriça e gestos medidos, parecia feita de madeira, a funcionar automaticamente."

terça-feira, 1 de novembro de 2011

(embalar a alma)

Álvaro de Campos (2)

Acordar


"Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 
Acordar da Rua do Ouro, 
Acordar do Rocio, às portas dos cafés, 
Acordar 
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 


Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo. 
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se 
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma, 
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 


Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, 
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste, 
Seja 


A mulher que chora baixinho 
Entre o ruído da multidão em vivas... 
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 
Cheio de individualidade para quem repara... 
O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 
Tudo isto tende para o mesmo centro, 
Busca encontrar-se e fundir-se 
Na minha alma. 


Eu adoro todas as coisas 
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 
Tenho pela vida um interesse ávido 
Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 
Para aumentar com isso a minha personalidade. 


Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 
E a minha ambição era trazer o universo ao colo 
Como uma criança a quem a ama beija. 
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 
Do que as que vi ou verei. 
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 


Dá-me lírios, lírios 
E rosas também. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também, 
Crisântemos, dálias, 
Violetas, e os girassóis 
Acima de todas as flores... 


Deita-me as mancheias, 
Por cima da alma, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 


Meu coração chora 
Na sombra dos parques, 
Não tem quem o console 
Verdadeiramente, 
Exceto a própria sombra dos parques 
Entrando-me na alma, 
Através do pranto. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 


Minha dor é velha 
Como um frasco de essência cheio de pó. 
Minha dor é inútil 
Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 
E minha dor é silenciosa e triste 
Como a parte da praia onde o mar não chega. 
Chego às janelas 
Dos palácios arruinados 
E cismo de dentro para fora 
Para me consolar do presente. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 


Mas por mais rosas e lírios que me dês, 
Eu nunca acharei que a vida é bastante. 
Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 
Sobrar-me-á sempre de que desejar, 
Como um palco deserto. 


Por isso, não te importes com o que eu penso, 
E muito embora o que eu te peça 
Te pareça que não quer dizer nada, 
Minha pobre criança tísica, 
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também..."

James Joyce


"Não havia fuga possível Tinha que confessar-se, que explicar por palavras o que tinha feito e pensado, pecado a pecado. Como? Como?
- Padre, eu...
O pensamento penetrou como uma espada fria e brilhante na sua carne tenra: confissão. Mas não ali, na capela do colégio. Confessaria todo e cada pecado dos seus actos e pensamentos, com sinceridade; mas não ali, entre os seus companheiros. Longe dali, num local escuro, murmuraria a sua própria vergonha; e suplicou humildemente a Deus que não se ofendesse por ele não ousar confessar-se na capela do colégio e, numa total abjecção do espírito, implorou silenciosamente o perdão daqueles corações juvenis que o rodeavam. 
O tempo passou. Estava novamente sentado no primeiro banco da capela. A luz do dia, lá fora, já começava a declinar-se e, à medida que descia lentamente pelas persianas vermelhas, parecia que se punha o sol do último dia e que todas as almas estavam a ser arrebanhadas para o julgamento."