quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Flannery O'Connor


"Deteve-se ali, esforçando a vista para a frente, mas o espectáculo desvaneceu-se nas trevas que se iam reunindo. A noite caiu até nada restar além de um fino fio vermelho entre ela e a linha preta da terra, mas, mesmo assim, o rapaz ficou ali. Não mais sentia a sua fome como uma dor, mas sim como uma maré. Sentia-a encher-se dentro de si através dos tempos e das trevas, crescendo ao longo dos séculos, e sabia que crescia numa linha de homens cujas vidas haviam sido eleitas para suportá-la, que estavam fadados a perderem-se pelo mundo, estranhos oriundos daquela terra violenta onde o silêncio nunca se desfaz excepto para se bradar a verdade. Sentia-se aumentar desde o sangue de Abel até ao seu, erguendo-se para engoli-lo. Parecia no mesmo instante levantar-se e volver-se dentro dele. Rodopiou em direcção ao recorte do arvoredo. Ali, subindo e espalhando-se na noite, uma árvore auri-rubra de fogo ascendeu como se fosse consumir as trevas numa só tremenda explosão de chamas. O bafo do rapaz saiu ao encontro dela. Sabia ter sido este o fogo que cercara Daniel, que levantara Elias do chão, que falara a Moisés, e iria dentro de instantes dirigir-se a si. Lançou-se contra o chão e, com  o rosto rente à terra da campa, ouviu as palavras de ordem. IDE AVISAR OS FILHOS DE DEUS DA TREMENDA URGÊNCIA DA MISERICÓRDIA. As palavras eram tão silenciosas como sementes a abrirem-se uma a uma no seu sangue."

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