sábado, 13 de outubro de 2012

Al Berto (8)

"pouco mais há a dizer. caminho largando os últimos resíduos da memória.
fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo.
a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria.
mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros
lugares já estivera triste. por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra
adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando
a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo
deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo
pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento
reacender as feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando
forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços
é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias 
e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os 
desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida
vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. 
nem mesmo a vida, nenhuma morte. na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo,
recomeço a escrever. estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada
para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente,
sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.

in O Medo

2 comentários:

  1. "Começo finalmente a ausentar-me. Hoje, por exemplo, olhei-me ao espelho e vi que muito pouco resta de mim, daquela que conheci e tinha um nome. Onde terei começado a esquecer-me?
    [...]
    Falámos dos fantasmas com que nos atordoamos.
    Cansámo-nos na revisitação de lugares-comuns e de procurar um sentido para tudo isto. Foi inútil, a vida já não é uma coisa desejável.
    Sentimo-nos cansados, um cansaço semelhante à flor que murcha por excesso de luz, ou por falta de água. Não sei...
    [...]
    Conheço cada vez melhor aquilo que de mim se despede e não regressa, e aquilo que nasce algures onde já não estou. Perdi o controle dos meus pensamentos, tudo se confunde nem sem tempo onde a minha lucidez, a minha razão, são outras.
    [...]
    Tudo vem ao chamamento. Penso mar, e o mar enche-me a alma e as mãos. Balbucio cal, e na pele do tempo cresce uma casa onde não viverei, ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos, e nela nos ferimos.
    Digo sol, e quase cega consigo tocar-lhe. Só por ti clamo, e não te acendes, nem regressas, e me queimas.
    [...]
    Fugir. Descer do cimo da minha razão por uma corda de chuva, vestir-me com a humidade verde das plantas, adquirir asas e reaver a memória de um mundo primordial.
    Dormirei escondida atrás de casas em ruínas. E no fundo do sonho, Alaíno, tu és a corda que me liga ao conhecimento daquilo que me rodeia para além do sono.
    [...]
    Dentro de pouco tempo não sentirei mais o meu corpo, e tudo me será permitido, mesmo a morte, ou a simulação da vida.
    As mãos, aqui estão as minhas mãos, secas e despojadas como um deserto. Para que terão servido as minhas mãos?
    E os meus olhos? Em que extremidade do tempo por percorrer se situará o meu olhar?
    E os meus lábios, os meus lábios? Alaíno... beija-os depressa.
    [...]
    Quem será esta gente cor de fumo que se evade dos meus sonhos?
    Ouço um rumor surdo de ossos ardendo, é noite. Estendo as asas. Abutre de mim mesma, despedaço-me sem piedade."

    Al Berto - Lunário

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  2. Dois dos meu preferidos...

    "há-de flutuar uma cidade...

    há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
    pensava eu... como seriam felizes as mulheres
    à beira mar debruçadas para a luz caiada
    remendando o pano das velas espiando o mar
    e a longitude do amor embarcado

    por vezes
    uma gaivota pousava nas águas
    outras era o sol que cegava
    e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
    os dias lentíssimos... sem ninguém

    e nunca me disseram o nome daquele oceano
    esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
    punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
    assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
    se espantasse com a minha solidão

    (anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
    coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

    um dia houve
    que nunca mais avistei cidades crepusculares
    e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
    inclino-me de novo para o pano deste século
    recomeço a bordar ou a dormir
    tanto faz
    sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade"



    "ouve-me
    que o dia te seja limpo e
    a cada esquina de luz possas recolher
    alimento suficiente para a tua morte

    vai até onde ninguém te possa falar
    ou reconhecer - vai por esse campo
    de crateras extintas - vai por essa porta
    de água tão vasta quanto a noite

    deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
    e as loucas aveias que o ácido enferrujou
    erguerem-se na vertigem do voo - deixa
    que o outono traga os pássaros e as abelhas
    para pernoitarem na doçura
    do teu breve coração - ouve-me

    que o dia te seja limpo
    e para lá da pele constrói o arco de sal
    a morada eterna - o mar por onde fugirá
    o etéreo visitante desta noite

    não esqueças o navio carregado de lumes
    de desejos em poeira - não esqueças o ouro
    o marfim - os sessenta comprimidos letais
    ao pequeno-almoço"

    Al Berto . horto de incêndio

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