"Os meus livros (que não sabem que existo) São uma parte de mim, como este rosto De têmporas e olhos já cinzentos Que em vão vou procurando nos espelhos" Jorge Luis Borges
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
Diego Doncel
"Neste entardecer procurei quem sou - dizia -,
e vi em mim apenas um sonho.
E não tive sequer um pobre sinal
que revelasse qual era o meu lugar a meio da vida.
Pois tudo em mim era a obra de um sonho
da morte debaixo de um céu cansado,
o fruto do declinar do tempo ao compasso
da luz, um homem que era eu
e que via envelhecer o seu próprio rosto
e murcharem as suas mãos com as sombras
até se fazerem cinza.
O mundo este entardecer não existia
por ser também um antigo desejo
que nunca foi encarnado
e se tinha perdido ao fundo do nevoeiro.
E com ele perdia-se o meu próprio corpo
e a miséria de umas tantas lembranças
e as marcas de todas as paisagens onde nunca
pude estar vivo ou encontrei qualquer verdade
de quem podia ser eu.
Neste entardecer estou rodeado de coisas
que já morreram, e encontro-me a mim mesmo,
como se fosse um fantasma,
pelas extensões desertas de algo que não sei se é real.
Sinto dentro de mim como é permeável a consciência
que nos separa do nosso desaparecimento,
permeável como o voo de um pássaro
ou de uma borboleta,
como a areia do deserto que somos
atravessando as fronteiras de um país para outro país.
Não sou nada neste entardecer a não ser um morto
que fala com a língua dos sonhos
e cujos olhos apenas vêem
a realidade defunta do seu defunto coração.
Eu não tenho presente apenas tenho passado
e coisas que morreram, e até o passado
é apócrifo e está fora de mim.
Deste sítio olho o mundo: as árvores
como espectros que também são mentira,
as nuvens que pelo céu arrastam
o reflexo derradeiro do sol, o instante derradeiro
de realidade, o pesponto de um insecto
no peitoril a lutar inutilmente
contra o peso da geada.
E sei que também as coisas são um jogo
no espelho quebrado do destino,
um princípio de queda no princípio de irrealidade.
Quando nasci já tinha morrido e depois percebi
com pesar que eu só era o sonho
de algo falso que o próprio mundo inventou.
A consciência da morte deu-me talvez
a consciência de viver, mas ainda
não compreendi para quê."
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