"pouco mais há a dizer. caminho largando os últimos resíduos da memória.
fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo.
a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria.
mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros
lugares já estivera triste. por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra
adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando
a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo
deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo
pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento
reacender as feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando
forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços
é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias
e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os
desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida
vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu.
nem mesmo a vida, nenhuma morte. na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo,
recomeço a escrever. estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada
para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente,
sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.
in O Medo
"Começo finalmente a ausentar-me. Hoje, por exemplo, olhei-me ao espelho e vi que muito pouco resta de mim, daquela que conheci e tinha um nome. Onde terei começado a esquecer-me?
ResponderEliminar[...]
Falámos dos fantasmas com que nos atordoamos.
Cansámo-nos na revisitação de lugares-comuns e de procurar um sentido para tudo isto. Foi inútil, a vida já não é uma coisa desejável.
Sentimo-nos cansados, um cansaço semelhante à flor que murcha por excesso de luz, ou por falta de água. Não sei...
[...]
Conheço cada vez melhor aquilo que de mim se despede e não regressa, e aquilo que nasce algures onde já não estou. Perdi o controle dos meus pensamentos, tudo se confunde nem sem tempo onde a minha lucidez, a minha razão, são outras.
[...]
Tudo vem ao chamamento. Penso mar, e o mar enche-me a alma e as mãos. Balbucio cal, e na pele do tempo cresce uma casa onde não viverei, ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos, e nela nos ferimos.
Digo sol, e quase cega consigo tocar-lhe. Só por ti clamo, e não te acendes, nem regressas, e me queimas.
[...]
Fugir. Descer do cimo da minha razão por uma corda de chuva, vestir-me com a humidade verde das plantas, adquirir asas e reaver a memória de um mundo primordial.
Dormirei escondida atrás de casas em ruínas. E no fundo do sonho, Alaíno, tu és a corda que me liga ao conhecimento daquilo que me rodeia para além do sono.
[...]
Dentro de pouco tempo não sentirei mais o meu corpo, e tudo me será permitido, mesmo a morte, ou a simulação da vida.
As mãos, aqui estão as minhas mãos, secas e despojadas como um deserto. Para que terão servido as minhas mãos?
E os meus olhos? Em que extremidade do tempo por percorrer se situará o meu olhar?
E os meus lábios, os meus lábios? Alaíno... beija-os depressa.
[...]
Quem será esta gente cor de fumo que se evade dos meus sonhos?
Ouço um rumor surdo de ossos ardendo, é noite. Estendo as asas. Abutre de mim mesma, despedaço-me sem piedade."
Al Berto - Lunário
Dois dos meu preferidos...
ResponderEliminar"há-de flutuar uma cidade...
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade"
"ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço"
Al Berto . horto de incêndio