quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Carson McCullers (2)


"Durante toda a tarde Ken Harris estivera sentado diante de uma página em branco na máquina de escrever. Era Inverno e nevava. A neve abafava o som dos automóveis e o apartamento na Village era tão silencioso que o despertador o incomodava. Trabalhava no quarto de dormir porque o quarto e os objectos da mulher o acalmavam e faziam sentir menos sozinho. O efeito da bebida de antes do almoço (ou era uma bebida para acordar?) desaparecera depois de comer uma lata de chili com carne sozinho na cozinha. Às quatro horas pôs o relógio no cesto da roupa suja e voltou para a máquina de escrever. A folha ainda estava branca e a sua brancura parecia invadir-lhe o espírito. No entanto houvera uma altura (há quanto tempo?) em que uma canção na esquina, uma voz da infância, eram suficientes para que a paisagem da memória condensasse o passado, de forma que o acaso e o presente se transfiguravam num romance, numa história; houvera uma altura em que a página vazia evocava e seleccionava as memórias e ele sentiu um domínio fantasmagórico da sua arte. Uma altura, afinal, em que era um escritor e escrevia quase todos os dias. Trabalhando duro, dividia cuidadosamente as frases, rasurava frases mal escritas e substituía as palavras repetidas. Agora sentava-se ali, curvado e com círculos debaixo dos olhos azul-acinzentados, e um boca de lábios cheios e pálidos. Era no vento escaldante do Texas da sua infância que pensava ao observar pela janela a neve que caía em Nova Iorque. E de repente uma válvula da memória abriu-se e disse as palavras enquanto as escrevia:

Who has seen the wind?
Neither you nor I:
But when the trees bow down their heads
The wind is passing by.

Os versos da infância pareciam-lhe tão sinistros que, sentado a pensar neles, as palmas das mãos ficaram húmidas de suor."

*No Conto "Quem viu o vento?"

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