quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Diogo Vaz Pinto (2)

"Começar outra vez com tão
pouco: uma luz difícil caída por ali
e os nativos da chuva, magros
e quietos, como em velhas fotografias
sem moldura, cuspindo do silêncio
os caroços no leito seco do rio
que nos junta a todos na mesma sede.

De teu, vêm aqui dar sinais:
uns cabelos leves, meio estragados
mas a que o mel da tarde
se juntava tão bem, e aquele odor
meigo e teimoso, frutado, a que encostei
a boca e quis esquecer-me e foi fácil.
O amor, mentira que começava 
a interessar-me. Mas deixa lá.

Desço as mesmas ruas, torcendo-se,
onde me doem todos os anúncios
cansados, a fantasia podre
destes dias e os reflexos frágeis de mim
que apanho a meio de algum gesto,
patéticos, pedindo direcções,
por vezes, a medo, sugerindo-me
merdas e eu entre o lixo dos meus
finais possíveis, numa vontade
infectada de azul, vou estripando
com a caneta algum muro.

Para o poema tenho só restos
de noites mal dormidas, outras
descoladas da memória. Caminhos
e desvios de alguém que demora mais
cinco minutos hoje que ontem
para chegar a casa. Perdido o gosto,
o entusiasmo das coisas
em que nos sentia, isto de estarmos
sentados como se fôssemos longe.
E a água, os olhos num jeito de ir,
ficando, baços, grossos de sono.

Pouso a chávena do café no parapeito,
abotoas a camisa mas tão devagar
e fica-te um botão esquecido,
do outro lado uma corda tensa e a roupa
estendida sobre ela. Foi a uma
terça, mas de que mês, que dia e
para quê, caralho?

As árvores daqui vão dar
as primeiras flores - é apenas um aviso,
quase sem cor. Alguma coisa sempre
se recupera.

E ainda que o vento se canse
dói-me de um mesmo modo
ouvi-lo chegar assim,
como um requiem. Ponho a voz 
colada à da gravação e não me importa
o que se derrama nestes lábios...
(Wild is the wind)
Pudesse com esta canção acabar
o mundo também. Se ao menos
o inverno."

in Nervo, Averno

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