"Os meus livros (que não sabem que existo) São uma parte de mim, como este rosto De têmporas e olhos já cinzentos Que em vão vou procurando nos espelhos" Jorge Luis Borges
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
Maria do Rosário Pedreira
Deixei de ouvir-te
"Deixei de ouvir-te. E sei que sou
mais triste com o teu silêncio.
Preferia pensar que só adormeceste; mas
se encostar ao teu pulso o meu ouvido
não escutarei senão a minha dor.
Deus precisou de ti, bem sei. E
não vejo como censurá-lo
ou perdoar-lhe"
domingo, 28 de outubro de 2012
Rui Nunes (3)
(vésperas da infância)
"és só um tempo que uma vida encontrou, a pequena bússola da morte que
se orienta pelo riso.
Não deixes a criança correr à tua frente: ela abandona a sombra aos seus
passos como se fosse uma frase que tu acabarás.
Não deixes a sua fuga perder-se no caminho, mas também não a persigas:
espera-te um fio emaranhado, o malévolo deserto onde se cruzam sinais
de viagem.
Não te afastes pelo rumo que a bússola parece indicar: o poço está seco e
a areia cai sobre a areia numa miragem de sede"
in Telhados de Vidro nº8, Averno
"és só um tempo que uma vida encontrou, a pequena bússola da morte que
se orienta pelo riso.
Não deixes a criança correr à tua frente: ela abandona a sombra aos seus
passos como se fosse uma frase que tu acabarás.
Não deixes a sua fuga perder-se no caminho, mas também não a persigas:
espera-te um fio emaranhado, o malévolo deserto onde se cruzam sinais
de viagem.
Não te afastes pelo rumo que a bússola parece indicar: o poço está seco e
a areia cai sobre a areia numa miragem de sede"
in Telhados de Vidro nº8, Averno
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (22)
Para certas coisas não existem palavras... Além do mais, defendo que os clientes deveriam ser "autuados"pelos danos psicológicos que provocam.
Cliente: Olhe, tem aqui daqueles livros para ler?
(!!!!!!!!!!!??????????????)
Cliente: Olhe, tem aqui daqueles livros para ler?
(!!!!!!!!!!!??????????????)
sábado, 27 de outubro de 2012
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
Miguel-Manso (2)
Continuação de Jean Nicot
"sou dentro de mim o que quer fugir
embora vá recusando a cada bafo
o panorama dos astronautas
tiro notas
dos calendários gigantes
das marés do sol e da lua
do rasto agrícola das nossas mãos
sobre a mesa
de madrugada
remo como exilado inca
em direcção à luz
se ainda me for fácil mentir direi
é afinal a única substância do poema
este cigarro entre estrofes."
in Contra A Manhã Burra, Mariposa Azual
Nunca um grafite ficou tão bem numa parede (8)
Liberdade
"Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma."
Fernando Pessoa
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (21)
Cliente: Olhe, não tem aquele livro que refere o nome de um outro livro, que eu sei que dentro desse livro, tem o nome do livro que eu quero comprar?
Eu: o_O !!!!!!!!!!!!!!!!
Eu: o_O !!!!!!!!!!!!!!!!
Helder Moura Pereira (6)
"Tu és uma melodia daquelas que não saem
da cabeça, por mais que a gente se esforce,
por mais que a gente não queira.
E agora já não és melodia, agora és martelo
a massacrar a minha alma estarrecida.
Cruzaste-te comigo num céu de cinzas, pobre
mendigo de vontades alheias.
Reconstituímos uma falsa infância
com uma lucidez que se aproxima da demência,
leituras de retratos, caligrafias, procurando
alguém que não existiu, que se metamorfoseou.
Porque sei eu que sou eu naquele barco,
naquela canoa, com aquele lenço, com aquela
pessoa? Disseram-me e eu acreditei.
Houve um tempo em que a raiva nascia
na minha pele e contudo agora
ao ver o que ficou desse meu tempo
parece que escrevi receitas de bolos
e nem uma única festiva canção.
Perderam-me e portanto quando me encontraste
eu era um ser à deriva e fácil de encontrar.
Aldeia riscada do mapa, um pardalito
assustado, cabeça cheia de saberes
desgastados, inúteis e esquecidos."
in Se as Coisas não Fossem o Que São
Carson McCullers (2)
"Durante toda a tarde Ken Harris estivera sentado diante de uma página em branco na máquina de escrever. Era Inverno e nevava. A neve abafava o som dos automóveis e o apartamento na Village era tão silencioso que o despertador o incomodava. Trabalhava no quarto de dormir porque o quarto e os objectos da mulher o acalmavam e faziam sentir menos sozinho. O efeito da bebida de antes do almoço (ou era uma bebida para acordar?) desaparecera depois de comer uma lata de chili com carne sozinho na cozinha. Às quatro horas pôs o relógio no cesto da roupa suja e voltou para a máquina de escrever. A folha ainda estava branca e a sua brancura parecia invadir-lhe o espírito. No entanto houvera uma altura (há quanto tempo?) em que uma canção na esquina, uma voz da infância, eram suficientes para que a paisagem da memória condensasse o passado, de forma que o acaso e o presente se transfiguravam num romance, numa história; houvera uma altura em que a página vazia evocava e seleccionava as memórias e ele sentiu um domínio fantasmagórico da sua arte. Uma altura, afinal, em que era um escritor e escrevia quase todos os dias. Trabalhando duro, dividia cuidadosamente as frases, rasurava frases mal escritas e substituía as palavras repetidas. Agora sentava-se ali, curvado e com círculos debaixo dos olhos azul-acinzentados, e um boca de lábios cheios e pálidos. Era no vento escaldante do Texas da sua infância que pensava ao observar pela janela a neve que caía em Nova Iorque. E de repente uma válvula da memória abriu-se e disse as palavras enquanto as escrevia:
Who has seen the wind?
Neither you nor I:
But when the trees bow down their heads
The wind is passing by.
Os versos da infância pareciam-lhe tão sinistros que, sentado a pensar neles, as palmas das mãos ficaram húmidas de suor."
*No Conto "Quem viu o vento?"
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
Josep M. Rodríguez (3)
Paixão e Morte de São Sebastião
"Pelo vão que há entre certos edifícios
cada manhã espreita o horizonte.
Os telhados são como uma escada
que me leva até Deus,
e à sua ferida sem fim
através da qual o dia
sangra.
É um lugar
onde a carne deixa de ser carne,
para se tornar fé,
interrogante,
dúvida.
É um lugar que existe e que não existe,
tal como a sombra
do pássaro mais alto.
Olho o horizonte
e nesse gesto aprendo claridade.
Atado ao frágil tronco deste dia,
cada raio de luz
brinca a matar-me."
in A Caixa Negra, Averno
"Pelo vão que há entre certos edifícios
cada manhã espreita o horizonte.
Os telhados são como uma escada
que me leva até Deus,
e à sua ferida sem fim
através da qual o dia
sangra.
É um lugar
onde a carne deixa de ser carne,
para se tornar fé,
interrogante,
dúvida.
É um lugar que existe e que não existe,
tal como a sombra
do pássaro mais alto.
Olho o horizonte
e nesse gesto aprendo claridade.
Atado ao frágil tronco deste dia,
cada raio de luz
brinca a matar-me."
in A Caixa Negra, Averno
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (20)
Como é que uma livreira passa do mais largo sorriso ao esgar mais medonho que consegue?
Cliente: Queria um livro de Franz Kafka.
Eu: (largo sorriso) Qual é a obra? O Processo, A Metamorfose, A Carta ao Pai...
Cliente: Não, o livro Anna Karenina.
Eu: (?????????!!!!!!!!!!!! o_O) Esse é mesmo de Tolstoi, que deve estar agora a dar voltas na tumba.
Cliente: Queria um livro de Franz Kafka.
Eu: (largo sorriso) Qual é a obra? O Processo, A Metamorfose, A Carta ao Pai...
Cliente: Não, o livro Anna Karenina.
Eu: (?????????!!!!!!!!!!!! o_O) Esse é mesmo de Tolstoi, que deve estar agora a dar voltas na tumba.
domingo, 21 de outubro de 2012
Nuno Júdice (7)
Acorda. Fala-me
"«-Por que me escreves? Que inspiração alheia
te suja os dedos de versos, se os teus lábios
não pronunciam nunca as palavras que esperei,
quando, em tardes de vento, te olhava em
silêncio? Por que interrompes a estrofe no meu nome,
a flor obscura de uma primavera que não
chegou? Deixa-me!, entre
as copas geométricas de um ritmo vegetal,
respirando na efémera duração de vozes que não ouço;
e sob um breve bater de folhas nos arbustos
perenes que o fumo da madrugada escurece: sombra
separada da própria sombra, e eco já vago
de um canto de pássaro já morto! E não deixes que
a minha queixa se dissipe num rumor de águas
estagnadas - charcos da chuva sedentária do outono,
lagoas baças de um choro matinal...» Desperdícios
de vida num fundo amargo de memória."
in Poesia Reunida, Dom Quixote
"«-Por que me escreves? Que inspiração alheia
te suja os dedos de versos, se os teus lábios
não pronunciam nunca as palavras que esperei,
quando, em tardes de vento, te olhava em
silêncio? Por que interrompes a estrofe no meu nome,
a flor obscura de uma primavera que não
chegou? Deixa-me!, entre
as copas geométricas de um ritmo vegetal,
respirando na efémera duração de vozes que não ouço;
e sob um breve bater de folhas nos arbustos
perenes que o fumo da madrugada escurece: sombra
separada da própria sombra, e eco já vago
de um canto de pássaro já morto! E não deixes que
a minha queixa se dissipe num rumor de águas
estagnadas - charcos da chuva sedentária do outono,
lagoas baças de um choro matinal...» Desperdícios
de vida num fundo amargo de memória."
in Poesia Reunida, Dom Quixote
sábado, 20 de outubro de 2012
Renata Correia Botelho (3)
"era uma noite branca com um rio
dentro, ali afundámos os dias
contados, as roseiras do jardim,
duas ou três horas felizes
e outros erros.
trocávamos tudo por um sopro de outono.
palmilhamos a imensa
verdade do deserto, quantos ermos
ainda entre nós e a terra húmida?"
Manuel António Pina
Não o Sonho
"Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora."
in Atropelamento e Fuga
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (19)
Dia dos silêncios constrangedores...
Round 1
Cliente: Olhe, eu queria daqueles livros mais pequenos, os portáteis.
Eu: Livros de bolso portanto, portáteis são os computadores.
(silêncio constrangedor)
Round 2
Cliente: Boa noite! Tem o "Intenerâncias" da Morte do Saramago?
Eu: Boa noite! Lamento mas esse ainda não foi escrito. Tenho o Intermitências da Morte, se desejar.
(silêncio constrangedor)
A livreira nem sempre consegue ficar calada...
Round 1
Cliente: Olhe, eu queria daqueles livros mais pequenos, os portáteis.
Eu: Livros de bolso portanto, portáteis são os computadores.
(silêncio constrangedor)
Round 2
Cliente: Boa noite! Tem o "Intenerâncias" da Morte do Saramago?
Eu: Boa noite! Lamento mas esse ainda não foi escrito. Tenho o Intermitências da Morte, se desejar.
(silêncio constrangedor)
A livreira nem sempre consegue ficar calada...
quinta-feira, 18 de outubro de 2012
Herberto Helder (6)
"Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.
Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde
uma paixão bárbara, um amor.
Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada."
in Ofício Cantante
existem velozmente. Onde
às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.
Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde
uma paixão bárbara, um amor.
Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada."
in Ofício Cantante
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (18)
A livreira pensava que certas coisas não voltariam a acontecer. Mas afinal acontecem, e (in)felizmente logo duas no mesmo dia.
Round 1
Cliente: Olá, precisava de uma ajudinha!
Eu: Em que posso ajudar?
Cliente: Eu estive a semana passada numa livraria e vi lá um livro, eu gostava de o comprar...
Eu: Qual o título do livro?
Cliente: Não sei. Mas é branco e com letras.
Round 2
Cliente: Olhe queria um livro, só sei que é amarelo e tem uma banana na capa.
(mas porquê a mim, porquê?)
Round 1
Cliente: Olá, precisava de uma ajudinha!
Eu: Em que posso ajudar?
Cliente: Eu estive a semana passada numa livraria e vi lá um livro, eu gostava de o comprar...
Eu: Qual o título do livro?
Cliente: Não sei. Mas é branco e com letras.
Round 2
Cliente: Olhe queria um livro, só sei que é amarelo e tem uma banana na capa.
(mas porquê a mim, porquê?)
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
Rui Pires Cabral (4)
«I felt that was all unreal»
"Chega ao fim do dia
a hora mais lenta, quando o céu
é vago e as luzes se acendem
no prédio da frente.
Vemo-los por vezes
dentro das janelas, vultos
delicados como miniaturas
ou meros reflexos que passam
nos vidros.
Alguns prosseguem encargos
de sombra, outros detêm-se
a olhar a rua, no gesto
a expressão do seu puro
enigma.
E são como provas
de coisa nenhuma. Se acaso
nos fitam, parecem dizer:
a morte não será decerto
mais estranha que a vida."
in Oráculos de Cabeceira, Averno
"Chega ao fim do dia
a hora mais lenta, quando o céu
é vago e as luzes se acendem
no prédio da frente.
Vemo-los por vezes
dentro das janelas, vultos
delicados como miniaturas
ou meros reflexos que passam
nos vidros.
Alguns prosseguem encargos
de sombra, outros detêm-se
a olhar a rua, no gesto
a expressão do seu puro
enigma.
E são como provas
de coisa nenhuma. Se acaso
nos fitam, parecem dizer:
a morte não será decerto
mais estranha que a vida."
in Oráculos de Cabeceira, Averno
Diego Doncel
"Neste entardecer procurei quem sou - dizia -,
e vi em mim apenas um sonho.
E não tive sequer um pobre sinal
que revelasse qual era o meu lugar a meio da vida.
Pois tudo em mim era a obra de um sonho
da morte debaixo de um céu cansado,
o fruto do declinar do tempo ao compasso
da luz, um homem que era eu
e que via envelhecer o seu próprio rosto
e murcharem as suas mãos com as sombras
até se fazerem cinza.
O mundo este entardecer não existia
por ser também um antigo desejo
que nunca foi encarnado
e se tinha perdido ao fundo do nevoeiro.
E com ele perdia-se o meu próprio corpo
e a miséria de umas tantas lembranças
e as marcas de todas as paisagens onde nunca
pude estar vivo ou encontrei qualquer verdade
de quem podia ser eu.
Neste entardecer estou rodeado de coisas
que já morreram, e encontro-me a mim mesmo,
como se fosse um fantasma,
pelas extensões desertas de algo que não sei se é real.
Sinto dentro de mim como é permeável a consciência
que nos separa do nosso desaparecimento,
permeável como o voo de um pássaro
ou de uma borboleta,
como a areia do deserto que somos
atravessando as fronteiras de um país para outro país.
Não sou nada neste entardecer a não ser um morto
que fala com a língua dos sonhos
e cujos olhos apenas vêem
a realidade defunta do seu defunto coração.
Eu não tenho presente apenas tenho passado
e coisas que morreram, e até o passado
é apócrifo e está fora de mim.
Deste sítio olho o mundo: as árvores
como espectros que também são mentira,
as nuvens que pelo céu arrastam
o reflexo derradeiro do sol, o instante derradeiro
de realidade, o pesponto de um insecto
no peitoril a lutar inutilmente
contra o peso da geada.
E sei que também as coisas são um jogo
no espelho quebrado do destino,
um princípio de queda no princípio de irrealidade.
Quando nasci já tinha morrido e depois percebi
com pesar que eu só era o sonho
de algo falso que o próprio mundo inventou.
A consciência da morte deu-me talvez
a consciência de viver, mas ainda
não compreendi para quê."
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Junichiro Tanizaki
"Ontem, apercebi-me de mais um sintoma, embora também possa tratar-se de um sintoma neurótico. Por volta das três da tarde, quando queria telefonar a Kimura, não consegui lembrar-me do número de telefone da escola dele, embora se trate de um número para onde costumo ligar quase todos os dias. É evidente que já tinha tido lapsos de memória, mas neste caso não se tratou de simples esquecimento: foi uma espécie de amnésia. Nem sequer consegui lembrar-me do número da central telefónica. Fiquei surpreendido e desconcertado. A medo, tentei pensar no nome da escola, mas também não serviu de nada. O que me surpreendeu mais foi o facto de me ter esquecido do nome de Kimura. Até recordar-me do nome da nossa empregada me parecia um esforço demasiado. (...) O pior é que nem sequer me lembrava do nome da nossa rua. A única coisa que sabia era que morávamos no bairro Sakyo de Quioto.
Fui tomado por uma enorme ansiedade. Se aquilo continuasse, se fosse piorando a pouco e pouco, não tardariam a retirar-me o meu cargo universitário."
domingo, 14 de outubro de 2012
Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (17)
A livreira voltou a vestir o colete, passa as mãos nas lombadas e cheira o papel. A livreira adora, ama o que faz.
Respirar livros, autores, títulos...
E respirar muito fundo quando acontecem estas situações:
Cliente: Precisava de ajuda!
Eu: Boa Noite! Em que posso ajudar?
Cliente: Procuro... aqueles livros, está a ver? Aqueles livros de estudo.
Eu: Qual o livro que procura?
Cliente: Aquele de exames Nacionais para o 9ºAno.
Eu: Lamento, mas exames nacionais é só mesmo no 12º 0_o
Respirar livros, autores, títulos...
E respirar muito fundo quando acontecem estas situações:
Cliente: Precisava de ajuda!
Eu: Boa Noite! Em que posso ajudar?
Cliente: Procuro... aqueles livros, está a ver? Aqueles livros de estudo.
Eu: Qual o livro que procura?
Cliente: Aquele de exames Nacionais para o 9ºAno.
Eu: Lamento, mas exames nacionais é só mesmo no 12º 0_o
sábado, 13 de outubro de 2012
Al Berto (8)
"pouco mais há a dizer. caminho largando os últimos resíduos da memória.
fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo.
a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria.
mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros
lugares já estivera triste. por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra
adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando
a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo
deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo
pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento
reacender as feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando
forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços
é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias
e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os
desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida
vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu.
nem mesmo a vida, nenhuma morte. na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo,
recomeço a escrever. estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada
para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente,
sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.
in O Medo
fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo.
a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria.
mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros
lugares já estivera triste. por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra
adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando
a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo
deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo
pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento
reacender as feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando
forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços
é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias
e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os
desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida
vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu.
nem mesmo a vida, nenhuma morte. na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo,
recomeço a escrever. estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada
para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente,
sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.
in O Medo
Jorge Roque (6)
"As folhas da palmeira batem como se fossem chuva,
mas nenhuma chuva cai, nem os meus olhos choram.
É apenas o vento a agitar as folhas, largas, pesadas,
e por dentro, quieto, o tempo a envelhecer. Assim,
penso, o gato deitado na soleira da porta aquece-se
ao sol que sobre ele se inclina. A porta abre-se para a
morte, é o desfecho óbvio. Mas ele não sabe, tão pouco
precisa. Se pudesse guardar um pouco de sol para as
noites de frio, custariam menos a passar. Mas nem isso
pode."
in Telhados de Vidro, Averno
mas nenhuma chuva cai, nem os meus olhos choram.
É apenas o vento a agitar as folhas, largas, pesadas,
e por dentro, quieto, o tempo a envelhecer. Assim,
penso, o gato deitado na soleira da porta aquece-se
ao sol que sobre ele se inclina. A porta abre-se para a
morte, é o desfecho óbvio. Mas ele não sabe, tão pouco
precisa. Se pudesse guardar um pouco de sol para as
noites de frio, custariam menos a passar. Mas nem isso
pode."
in Telhados de Vidro, Averno
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
Yukio Mishima (2)
"E lá estava ele, mergulhado numa surpreendente quietude; com o seu interior forrado de um ouro velho que o sol de Verão, lá fora cobrindo as paredes, protegia como laca, parecia um móvel inútil e magnífico. Aquelas imensas e vazias prateleiras de bibelots ali pousadas, em frente da verdura incendiada das madeiras... Para estar à sua altura, seria preciso um perfumador de dimensões fabulosas, ou então um vazio colossal... O Templo Dourado perdera tudo isso, varrera de uma vez a sua substância, e erguia apenas uma forma estranha e oca. Ainda mais singular: esse Templo Dourado, que tantas vezes me ofuscara com a sua beleza, pareceu-me nesse dia mais deslumbrante do que nunca. Nuna manifestara uma beleza tão forte, planando mil léguas acima da imagem que eu tinha dele, acima do mundo das realidades, sem qualquer ligação com o presente. Nunca a sua beleza fora tão fulgurante, nunca se esquivara tanto a qualquer espécie de significado."
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Josep M. Rodríguez (2)
Equação
"De pé neste penhasco,
aceito a mentira da paisagem.
Tudo é inacessível:
o orvalho
-que é suor vegetal-
e o comboio que passa.
Uma cegonha voa a preto e branco.
Tem o seu ninho no cimo da igreja
que fica junto ao cemitério.
Estranho paradoxo,
a pedra testemunha a fugacidade,
a carne é apenas um leito para o tempo.
(Cada osso que tenho é uma lápide
pelos mortos que escondo no meu íntimo.)
Para quê contar o tempo que nos resta?
Viver é abraçar escuridões:
do que não sabemos ao que não sabemos,
de uma distância a outra distância.
Tudo é inacessível.
Quem vê um comboio passa compreende o resto."
terça-feira, 9 de outubro de 2012
Desassossego (16)
"Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço."
Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Tiago Araújo (3)
2.
"as noites de insónia são de eterno retorno, onde entra, com
uma porosidade que absorve as trevas do quarto, para corrigir
o dia. estudo os movimentos, as imagens, repetidamente. volto
repetidamente ao corpo de trevas, aos lugares onde estive. a figura
que observas descreve-te as horas ausentes, com gestos ancorados.
por momentos, entre as horas, a noite é um processo mental de
te observares do exterior: és um habitante lento da cidade, entre
outros habitantes; prolongas o teu rasto de leite pela sombra."
Averno
Helder Moura Pereira (5)
"Assaltou-me a dúvida. Dei
o que tinha, que remédio, a dúvida
apontava-me uma pistola, que podia
ser de carnaval, mas também
podia não ser. E aí está
como a dúvida me levou
tudo. Socorri-me do amor, pedi
que me defendesse, mas o amor
fez orelhas moucas, o mais
que consegui foi que me deitasse
sortes, sortes que disseram
para eu contrariar a dúvida
com outra dúvida maior.
Doesse a quem doesse,
furiosamente escrevi resmas
e resmas de papel, baptizei
a minha nova dúvida de verdade
(muito conveniente), e fiz
o pino, trocei de mim, fiz pouco
das outras verdades que fui
encontrando nos livros
à medida que quis conhecer
o conteúdo exacto de todas
as religiões e depois, com seca
frieza e decisão, abracei-me
à dúvida por uma ribanceira"
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
Nunca um grafite ficou tão bem numa parede (6)
Sangue
"Versos
escrevem-se
depois de ter sofrido.
O coração
dita-os apressadamente.
E a mão tremente
quer fixar no papel os sons dispersos...
É só com sangue que se escrevem versos."
Saúl Dias, in Sangue
*(a cidade por vezes consegue ser bela)
Jorge Roque (5)
Diferença
"Não te afastes. Não me finjas outro que sabes não sou. Escuta
a dor da minha diferença, escuta a ferida que nela lateja. Para
me veres nos meus olhos nus, não podes ter medo do meu rosto verdadeiro.
Escuta, sou eu quem te fala (desdobro-me em palavras para chegar a ti,
desdobro-me em gestos que nunca te alcançam.) Custa esta violência surda,
de nada, de ninguém, de mim e ti, todos nós, custa sobretudo porque sem palavras
(por isso, repara, calo cada vez mais). Custa estar tão só nesta diferença que só
pode ser um corpo, neste silêncio que é a forma da tua boca fechada, morte que
avança e tem o teu olhar (é esse mesmo que vejo no espelho).
Custa esse teu grito, último gesto, sei-o bem, último apelo, desencontrar-me,
seguir para lá de mim, extinguir-se ninguém. Mas ainda assim não te afastes.
Escuto a tua ferida, nela corre sangue igual ao meu,
Estás só, por isso estás comigo.
in Broto Sofro, Averno
"Não te afastes. Não me finjas outro que sabes não sou. Escuta
a dor da minha diferença, escuta a ferida que nela lateja. Para
me veres nos meus olhos nus, não podes ter medo do meu rosto verdadeiro.
Escuta, sou eu quem te fala (desdobro-me em palavras para chegar a ti,
desdobro-me em gestos que nunca te alcançam.) Custa esta violência surda,
de nada, de ninguém, de mim e ti, todos nós, custa sobretudo porque sem palavras
(por isso, repara, calo cada vez mais). Custa estar tão só nesta diferença que só
pode ser um corpo, neste silêncio que é a forma da tua boca fechada, morte que
avança e tem o teu olhar (é esse mesmo que vejo no espelho).
Custa esse teu grito, último gesto, sei-o bem, último apelo, desencontrar-me,
seguir para lá de mim, extinguir-se ninguém. Mas ainda assim não te afastes.
Escuto a tua ferida, nela corre sangue igual ao meu,
Estás só, por isso estás comigo.
in Broto Sofro, Averno
domingo, 7 de outubro de 2012
Thomas Mann (2)
"As observações e vivências do solitário que só fala consigo próprio são simultaneamente mais indistintas e intensas do que as do homem social e os seus pensamentos são mais graves, mais fantasiosos e nunca sem uma coloração de melancolia. Imagens e impressões que outros poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário, ocupam-no mais do que é devido, tornam-se profundas no silêncio, ganham significado, transformam-se em acontecimento, aventura, emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido."
sábado, 6 de outubro de 2012
Carlos Alberto Machado (4)
"O meu baú é só metade da saudade do que não escrevi
a outra metade é dos despojos do que não sei
o meu baú envelheceu e as traças alimentam-se
de metáforas ilusões novelos de vidas e de mortes
a senhora da limpeza areja-o de quando em vez
escova o pó das palavras de que mais gosta junta-as
numa caixinha que era da senhora sua mãe
para que quero eu tanto lixo
está sempre ela a perguntar-me
e eu não sei responder por isso não me zango com ela
um destes dias ofereço o baú à minha zeladora de palavras."
in A Realidade Inclinada, Averno
a outra metade é dos despojos do que não sei
o meu baú envelheceu e as traças alimentam-se
de metáforas ilusões novelos de vidas e de mortes
a senhora da limpeza areja-o de quando em vez
escova o pó das palavras de que mais gosta junta-as
numa caixinha que era da senhora sua mãe
para que quero eu tanto lixo
está sempre ela a perguntar-me
e eu não sei responder por isso não me zango com ela
um destes dias ofereço o baú à minha zeladora de palavras."
in A Realidade Inclinada, Averno
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
Mário Cesariny (2)
Lembra-te
"Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos"
in Pena Capital, Assírio & Alvim
quinta-feira, 4 de outubro de 2012
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Diogo Vaz Pinto (2)
"Começar outra vez com tão
pouco: uma luz difícil caída por ali
e os nativos da chuva, magros
e quietos, como em velhas fotografias
sem moldura, cuspindo do silêncio
os caroços no leito seco do rio
que nos junta a todos na mesma sede.
De teu, vêm aqui dar sinais:
uns cabelos leves, meio estragados
mas a que o mel da tarde
se juntava tão bem, e aquele odor
meigo e teimoso, frutado, a que encostei
a boca e quis esquecer-me e foi fácil.
O amor, mentira que começava
a interessar-me. Mas deixa lá.
Desço as mesmas ruas, torcendo-se,
onde me doem todos os anúncios
cansados, a fantasia podre
destes dias e os reflexos frágeis de mim
que apanho a meio de algum gesto,
patéticos, pedindo direcções,
por vezes, a medo, sugerindo-me
merdas e eu entre o lixo dos meus
finais possíveis, numa vontade
infectada de azul, vou estripando
com a caneta algum muro.
Para o poema tenho só restos
de noites mal dormidas, outras
descoladas da memória. Caminhos
e desvios de alguém que demora mais
cinco minutos hoje que ontem
para chegar a casa. Perdido o gosto,
o entusiasmo das coisas
em que nos sentia, isto de estarmos
sentados como se fôssemos longe.
E a água, os olhos num jeito de ir,
ficando, baços, grossos de sono.
Pouso a chávena do café no parapeito,
abotoas a camisa mas tão devagar
e fica-te um botão esquecido,
do outro lado uma corda tensa e a roupa
estendida sobre ela. Foi a uma
terça, mas de que mês, que dia e
para quê, caralho?
As árvores daqui vão dar
as primeiras flores - é apenas um aviso,
quase sem cor. Alguma coisa sempre
se recupera.
E ainda que o vento se canse
dói-me de um mesmo modo
ouvi-lo chegar assim,
como um requiem. Ponho a voz
colada à da gravação e não me importa
o que se derrama nestes lábios...
(Wild is the wind)
Pudesse com esta canção acabar
o mundo também. Se ao menos
o inverno."
in Nervo, Averno
pouco: uma luz difícil caída por ali
e os nativos da chuva, magros
e quietos, como em velhas fotografias
sem moldura, cuspindo do silêncio
os caroços no leito seco do rio
que nos junta a todos na mesma sede.
De teu, vêm aqui dar sinais:
uns cabelos leves, meio estragados
mas a que o mel da tarde
se juntava tão bem, e aquele odor
meigo e teimoso, frutado, a que encostei
a boca e quis esquecer-me e foi fácil.
O amor, mentira que começava
a interessar-me. Mas deixa lá.
Desço as mesmas ruas, torcendo-se,
onde me doem todos os anúncios
cansados, a fantasia podre
destes dias e os reflexos frágeis de mim
que apanho a meio de algum gesto,
patéticos, pedindo direcções,
por vezes, a medo, sugerindo-me
merdas e eu entre o lixo dos meus
finais possíveis, numa vontade
infectada de azul, vou estripando
com a caneta algum muro.
Para o poema tenho só restos
de noites mal dormidas, outras
descoladas da memória. Caminhos
e desvios de alguém que demora mais
cinco minutos hoje que ontem
para chegar a casa. Perdido o gosto,
o entusiasmo das coisas
em que nos sentia, isto de estarmos
sentados como se fôssemos longe.
E a água, os olhos num jeito de ir,
ficando, baços, grossos de sono.
Pouso a chávena do café no parapeito,
abotoas a camisa mas tão devagar
e fica-te um botão esquecido,
do outro lado uma corda tensa e a roupa
estendida sobre ela. Foi a uma
terça, mas de que mês, que dia e
para quê, caralho?
As árvores daqui vão dar
as primeiras flores - é apenas um aviso,
quase sem cor. Alguma coisa sempre
se recupera.
E ainda que o vento se canse
dói-me de um mesmo modo
ouvi-lo chegar assim,
como um requiem. Ponho a voz
colada à da gravação e não me importa
o que se derrama nestes lábios...
(Wild is the wind)
Pudesse com esta canção acabar
o mundo também. Se ao menos
o inverno."
in Nervo, Averno
terça-feira, 2 de outubro de 2012
Janela
The Girl by the Window, 1893
Edvard Munch (Norwegian, 1863-1944)
"Aquela janela...
embala-te enquanto cantas, pedia.
mostra-me: as tuas formas humanas,
o disparate que é a tua vida
esse lento respirar de aceitação
de um ar que está cansado,
a luz que se filtra pelas janelas
e suaviza a escravidão do aposento,
o amargo matar dos minutos em horas
descontadas em dias tão iguais,
a condensação que se eleva
da panela da sopa que te alimenta,
as vozes que te rodeiam e matam o teu cantar.
roubo-te a intimidade com o meu olhar?
desculpa."
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