"Os meus livros (que não sabem que existo) São uma parte de mim, como este rosto De têmporas e olhos já cinzentos Que em vão vou procurando nos espelhos" Jorge Luis Borges
terça-feira, 27 de setembro de 2011
William Trevor
Brincadeiras de Crianças
"Gerard e Rebecca tornaram-se irmão e irmã depois de um turbilhão de emoções angustiadas. Cada qual assistira a tudo de um ponto de vista diferente, Gerard numa casa, Rebecca noutra. Dois anos de discussões ardentes, desaguisados e anuências, regressos à estaca zero, fracassos e reconciliações, até uma apoteose de insultos e rejeição, constituíram o espectáculo que ambos viram desfilar pelo buraco da fechadura. (...)
Numa tarde quente, uma quarta-feira, o dia em que o puro-sangue Quest for Fame venceu o Derby, a mãe de Gerard casou com o pai de Rebecca. Em seguida, alinharam-se os quatro, de pálpebras franzidas por causa da luz forte do sol, enquanto alguém lhes tirava uma fotografia. As duas crianças eram quase da mesma idade, Gerard com dez anos, Rebecca com nove. Gerard tinha o cabelo escuro, era muitíssimo magro e usava óculos. O cabelo arruivado de Rebecca formava-lhe curvas em volta das bochechas redondas. Tinha olhos muito vivos, de um tom escuro de azul. Os de Gerard, castanhos, eram graves.
Não nutriam quaisquer sentimentos um pelo outro, sem afecto nem aversão de uma parte ou outra: não se conheciam bem. Gerard era um intruso na casa que pertencera a Rebecca, mas ter visto partir a mãe fora para ela bem mais penoso.
- Eles vão-se adaptar - murmurou o pai de Rebecca numa casa de chá, depois do casamento.
Observando as duas crianças, sentadas em silêncio lado a lado, a sua nova esposa disse que esperava que sim.
E adaptaram-se mesmo. Reunidos, nos termos do acordo de paz, como partes interessadas mas impotentes, tornaram-se companheiros. Tinham saudades do passado; o ressentimento e a orfandade aproximava-os. Conversavam acerca das duas pessoas que visitavam ao domingo, e do modo como aqueles dois, outrora no centro do mundo, estavam agora vencidos e deslocados.
No topo da casa, a zona do sótão tinha sido remodelada para formar uma só divisão de tecto baixo, com janelas rasgadas até ao chão, e um soalho novo de tacos que parecia estender-se a perder de vista. As paredes eram de uma tonalidade deslavada de amarelo-esverdeado, e colunas de luz de sol faziam com que o freixo alvacento dos tacos parecesse quase branco. Não havia ali mobília. Duas lâmpadas eléctricas nuas pendiam do longo tecto inclinado. Era nesta terra-de-ninguém que Gerard e Rebecca encenavam o seu jogo de casamento e divórcio. Converteu-se numa brincadeira secreta, com as palavras a morrerem-lhes nos lábios quando alguém entrava, as boas maneiras a disfarçarem o embuste."
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