sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Rui Miguel Ribeiro



XIII - A Sombra


"Trago comigo mais noite
que a minha própria sombra.
Ela que insiste sempre em ficar
mais rente: ao chão, às quatro
paredes, aos objectos dispostos
que tentam com a sua ocupação
fazer uma leitura dos dias,
ocupar um pouco mais de mim,
tentar o seu regresso para mim,
que apenas ensaio o escuro
nestes dias."


*Da (fabulosa) Averno

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Al Berto (4)

"estou gasto. dei-me sempre mais do que podia. não há nada que me possam roubar, sou um homem espoliado de todos os bens, de todas as doenças, de todas as emoções. sou um corpo pronto para a viagem sem regresso, para o crime e para a morte. sou um corpo que se evita, um homem cujo nome se perdeu e cuja biografia possível está no pouco que escreveu. sou um corpo sem nacionalidade, pertenço às profundidades dos oceanos, ao voo da ave migrante. sou um analfabeto e não sei se terei tempo para me decifrar.
lá fora anoiteceu."


Al Berto
in O Medo

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Desassossego (5)

"Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração. Vale mais para mim um adjectivo que um pranto real da alma. O meu mestre Vieira.
     Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas das quentes dos que não têm nem tiveram mãe; e meus olhos que ardem dessas lágrimas mortas ardem dentro do meu coração.
     Não me lembro da minha mãe. Ela morreu tinha eu um ano. Tudo o que há de disperso e duro na minha sensibilidade vem da ausência desse calor e da saudade inútil dos beijos de que me não lembro. Sou postiço. Acordei sempre contra seios outros, acalentado por desvio.
     Ah, é a saudade do outro que eu poderia ter sido que me dispersa e sobressalta! Quem outro seria eu se me tivessem dado carinho do que vem desde o ventre até aos beijos na cara pequena?
     Talvez que a saudade de não ser filho tenha grande parte na minha indiferença sentimental. Quem, em criança, me apertou contra a cara não me podia apertar contra o coração. Essa estava longe, num jazigo – essa que me pertenceria, se o Destino houvesse querido que me pertencesse.
     Disseram-me, mais tarde, que minha mãe era bonita, e dizem que, quando mo disseram, eu não disse nada. Era já apto de corpo e alma, desentendido de emoções, e o falarem ainda não era uma notícia de outras páginas difíceis de imaginar.
     Meu pai, que vivia longe, matou-se quando eu tinha três anos e nunca o conheci. Não sei ainda por que é que vivia longe. Nunca me importei de o saber. Lembro-me da notícia da sua morte como de uma grande seriedade às primeiras refeições depois de se saber. Olhavam, lembro-me, de vez em quando para mim. E eu olhava de troco, entendendo estupidamente. Depois comia com mais regra, pois talvez, sem eu ver, continuassem a olhar-me.
     Sou todas essas coisas, embora o não queira, no fundo confuso da minha sensibilidade fatal."

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

The earth down below And the sky up above him

William Trevor


Brincadeiras de Crianças


"Gerard e Rebecca tornaram-se irmão e irmã depois de um turbilhão de emoções angustiadas. Cada qual assistira a tudo de um ponto de vista diferente, Gerard numa casa, Rebecca noutra. Dois anos de discussões ardentes, desaguisados e anuências, regressos à estaca zero, fracassos e reconciliações, até uma apoteose de insultos e rejeição, constituíram o espectáculo que ambos viram desfilar pelo buraco da fechadura. (...)
Numa tarde quente, uma quarta-feira, o dia em que o puro-sangue Quest for Fame venceu o Derby, a mãe de Gerard casou com o pai de Rebecca. Em seguida, alinharam-se os quatro, de pálpebras franzidas por causa da luz forte do sol, enquanto alguém lhes tirava uma fotografia. As duas crianças eram quase da mesma idade, Gerard com dez anos, Rebecca com nove. Gerard tinha o cabelo escuro, era muitíssimo magro e usava óculos. O cabelo arruivado de Rebecca formava-lhe curvas em volta das bochechas redondas. Tinha olhos muito vivos, de um tom escuro de azul. Os de Gerard, castanhos, eram graves.
Não nutriam quaisquer sentimentos um pelo outro, sem afecto nem aversão de uma parte ou outra: não se conheciam bem. Gerard era um intruso na casa que pertencera a Rebecca, mas ter visto partir a mãe fora para ela bem mais penoso.
- Eles vão-se adaptar - murmurou o pai de Rebecca numa casa de chá, depois do casamento.
Observando as duas crianças, sentadas em silêncio lado a lado, a sua nova esposa disse que esperava que sim.
E adaptaram-se mesmo. Reunidos, nos termos do acordo de paz, como partes interessadas mas impotentes, tornaram-se companheiros. Tinham saudades do passado; o ressentimento e a orfandade aproximava-os. Conversavam acerca das duas pessoas que visitavam ao domingo, e do modo como aqueles dois, outrora no centro do mundo, estavam agora vencidos e deslocados.
No topo da casa, a zona do sótão tinha sido remodelada para formar uma só divisão de tecto baixo, com janelas rasgadas até ao chão, e um soalho novo de tacos que parecia estender-se a perder de vista. As paredes eram de uma tonalidade deslavada de amarelo-esverdeado, e colunas de luz de sol faziam com que o freixo alvacento dos tacos parecesse quase branco. Não havia ali mobília. Duas lâmpadas eléctricas nuas pendiam do longo tecto inclinado. Era nesta terra-de-ninguém que Gerard e Rebecca encenavam o seu jogo de casamento e divórcio. Converteu-se numa brincadeira secreta, com as palavras a morrerem-lhes nos lábios quando alguém entrava, as boas maneiras a disfarçarem o embuste."

domingo, 25 de setembro de 2011

John Cheever (2)


"Esta é uma história para ler na cama, numa casa velha, numa noite de chuva. Os cães dormem e os cavalos de sela - Dombey e Trey - fazem-se ouvir nos estábulos do outro lado da rua suja, para lá do pomar. A chuva é suave e necessária, mas não desesperadamente. Os lençóis de água estão num nível satisfatório, o rio que corre perto está cheio, os jardins e os pomares - estamos num virar de estação - estão convenientemente irrigados. Quase todas as luzes estão apagadas na pequena aldeia perto da cascata onde, antigamente, o moinho produzia riscado de algodão.
As paredes de granito do moinho ainda estão de pé, nas margens do rio largo, e a casa do dono do moinho com as suas quatro colunas coríntias ainda encima o único monte do lugar."

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Dançamos ou queres antes ler?


Rayuela
Cap.7



"Toco tu boca, con un dedo toco el borde de tu boca, voy dibujándola como si saliera de mi mano, como si por primera vez tu boca se entreabriera, y me basta cerrar los ojos para deshacerlo todo y recomenzar, hago nacer cada vez la boca que deseo, la boca que mi mano elige y te dibuja en la cara, una boca elegida entre todas, con soberana libertad elegida por mí para dibujarla con mi mano por tu cara, y que por un azar que no busco comprender coincide exactamente con tu boca que sonríe por debajo de la que mi mano te dibuja.

     Me miras, de cerca me miras, cada vez más de cerca y entonces jugamos al cíclope, nos miramos cada vez más de cerca y nuestros ojos se agrandan, se acercan entre sí, se superponen y los cíclopes se miran, respirando confundidos, las bocas se encuentran y luchan tibiamente, mordiéndose con los labios, apoyando apenas la lengua en los dientes, jugando en sus recintos donde un aire pesado va y viene con un perfume viejo y un silencio. Entonces mis manos buscan hundirse en tu pelo, acariciar lentamente la profundidad de tu pelo mientras nos besamos como si tuviéramos la boca llena de flores o de peces, de movimientos vivos, de fragancia oscura. Y si nos mordemos el dolor es dulce, y si nos ahogamos en un breve y terrible absorber simultáneo del aliento, esa instantánea muerte es bella. Y hay una sola saliva y un solo sabor a fruta madura, y yo te siento temblar contra mí como una luna en el agua."


Julio Cortázar

Piolho(s) 2


Inventário Plebeu


"A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.


Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois - e aquém - de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)


Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
ou o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.


O sexto - não, não me apetece falar aqui do sexto.


Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim, pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou apenas pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).


Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas."


Manuel de Freitas
in Piolho 006
Revista de Poesia

Em modo repeat

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Miguel Martins

13 - Do Tacto


"Do tacto pouco se fala, e quase sempre em sentido figurado. O tacto é, contudo, o mais interessante dos cinco sentidos, o menos embotado por excessos de informação, o menos sujeito a ideias de gosto, pré-concebidas por outros, o que ainda nos pode dar prazeres em estado mais puro, menos sujeitos a racionalizações, na fronteira entre o medo e a entrega. Imaginem-se privados dos demais sentidos; tocam numa superfície peluda: será uma estola de arminho ou uma ratazana? Passado pouco, supera o medo, pouco importa: é bom ou não? No fundo, só isso interessa. Imaginai-vos beijados por alguém sem imagem, cheiro, som ou sabor: é bom ou não? Claro que os outros sentidos são quatro outras bênçãos, nas devemos despi-los das capas artificiais de que os foram e fomos recobrindo. E, sobretudo, é o meu conselho, redescubramos o tacto."


21 - Da Sublimidade Do Amor


"É recorrente, nos programas de televisão vespertinos e entre amigos dados às chamadas «conversas moles», debater, pela enésima vez, as diferenças entre paixão e amor. E, contudo, creio que não existem. Não acredito em amores desapaixonados, ainda que o preço a pagar por este entendimento seja, o mais das vezes, a confrontação com a finitude dos amores. O que não convém a quem pretende vender ao mundo uma imagem estável ou viver na comodidade preguiçosa do conhecido, por oposição aos trabalhos a que os recomeços, as reinvenções, obrigam. Não há - nos amores de natureza erótica, de raiz erótica, de fundação erótica - grandes espaços para fraternidades, filiações, amizades que não estejam subordinadas ao erotismo (como na poesia não há espaço para mensagens que não estejam subordinadas ao «dizer poético», que acaba por ser, ele próprio, a sua mensagem mais abrangente e perene).
Mas o que não há, também, é uma obrigatoriedade de amar. Nesse plano, há muitos estádios intermédios que podem, dependendo das circunstâncias, convir mais a cada qual. Até porque o amor não é uma questão de opção - é irracional, involuntário e altamente improvável. Pressupõe quadros, psicológicos e vivenciais, culturais e físicos, adequados e propícios. O amor é o menos democrático dos sentimentos, o mais elitista (só que, cá está, este elitismo é do seu foro interno - não de qualquer outro). E, sem que isso contradiga o que disse anteriormente, o amor é eterno: quando um amor termina é sinal de que uma das pessoas em causa, ou ambas, morreram, ainda que a morte seja metamorfose ou renascimento ou morte-viva.
E pode, eventualmente, nestes casos, o amor permanecer eternamente vivo no outro, como se votado a um morto ou como amor sem objecto que não o próprio amor, tornando-se, assim, ainda mais substantivo.
Este tipo de amor, estou em crer, só é permitido aos poetas."


*Da (fabulosa) Averno

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Herberto Helder (3)

Teoria Sentada


I


"Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrecer nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. Um lento
prazer de escrever, imitando
cantar. E vendo a voz disposta
nos seus sinais, revelada entre a humidade
dos corpos e a sua
glória secular. Uma dor esgota
a idade, com cravos, da minha voz.
E eu escrevo como quem imita uma vida e a vida
de uma inconcebível
magnitude. Ou somente de uma
voz. Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz.


O que digo é rápido, e somente o modo
de sofrer
é lento e lento. É rapidamente fácil e mortal
o que agora digo, e só
as mãos lentamente levantam o álcool
da canção e formosura
de um tempo absorvido. Digo tudo o que é
mais fácil da vida, e o fácil
é duro e batido pela paciência.
Porque a terra dorme e acorda de uma
para outra estação.


Porque vi crianças alojadas nos meus
melhores instantes, e vi
pedaços celestes fulminados na minha
paixão, e vi
textos de sangue marcados desordenadamente
pelo ouro. Porque vi e vi, na saída
de um dia para o começo
da primeira noite, e no despedaçar da noite.
E porque me levantei para sorrir
e ser cândido. E porque então
estremeci com a rapidez das palavras e a quente
morosidade
da vida. Eu disse o que era fácil
para dizer e eu tão
dificilmente havia reconhecido. Porque eu disse:
um prazer, um pesado prazer de cantar
a vida, consome a única voz
de uma vida mais sombria e mais funda.
E eu mudo sobre este campo parado
de cravos, quando a lua
rebenta, quando
sóis e raios crescem para todos os lados do seu
fulminante país.


Alguém se debruça para gritar e ouvir em meus
vales
o eco, e sentir a alegria de sua expressa
existência. Alguém chama por si próprio,
sobre mim, em seus terríficos confins.
E eu tremo de gosto, ardo, consumo
o pensamento, ressuscito
dons esgotados. Escrevo à minha volta,
esquecido de que é fácil, crendo
só no antigo gesto que alarga a solidão contra
a solidão do amor.
Escrevo o que bate em mim - a voz
fria, a alarmada malícia
das vozes, os ecos de alegria e a escuridão
das gargantas lascadas. Para os lados,
como se abrisse, com a doçura de um espelho
infiltrado na sombra. Fiel
como um punhal voltado para o amor
total de quem o empunha.


Alguém se procura dentro de meu ardor
escuro, e reconhece as noites
espantosas do seu próprio silêncio. E eu falo,
e vejo as mudanças e o imóvel
sentido dom meu amor, e vejo
minha boca aberta contra minha própria boca
num amargo fundo de vozes
universais.


Alguém procura onde eu estou só, e encontra
o campo desbaratado
e branco da sua
solidão."

terça-feira, 20 de setembro de 2011

560 (11)

Desassossego (4)

"E tão suave é a sensação que me alheia do débito e do crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser oco, como se não fosse mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tão suaves que são, continuo sonhando-os por detrás de falar, escrever, responder, conversar até. E através de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar... Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do choro que não tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação."


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

Tiago Araújo


13
"as mãos frias, as névoas retidas na voz. escrevo no vidro embaciado para um pátio reflexo e a claridade atravessa as frases provisórias. durante o dia para dentro, de noite para o exterior, com uma respiração de vitrais. o sentido está na postura corporal, na actividade nocturna, mais do que nas próprias palavras: está a ficar tarde. a descrição dos climas, as estações passadas, já não são suficientes para justificar os dias. entre o quarto e o escritório caminho entre dois tempos, ambos perdidos, e procuro uma saída desta casa em chamas. foi com esta disposição que me encontraste, um rapaz perdido, com o hábito de se enrolar sobre si próprio, à espera junto à porta fechada."

* Da (fabulosa) Averno

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Livreira (10)

Sinto tudo hoje como se ainda ontem o fosse.
A ansiedade, o bater forte do coração, as lágrimas nos olhos por ter desejado tanto uma coisa que se mostrava agora a meus olhos. 
O sentimento continua. O amor continua. A vontade continua.
O sonho tira o sono, tantas tantas vezes. 
Mas de manhã, aquele momento em que se abre a porta, o cheiro do papel invade os sentidos e mostra que tudo valeu a pena, que tudo vale a pena. 
E só quero continuar. 
Deixo um profundo agradecimento a todo os que estiveram sempre presentes. 
Eduardo, João para amigos assim qualquer palavra não chega. 
Doí num sítio que desconheço, imaginar que tudo isto pode deixar de existir, assim, não desisto, não baixo os braços, continuo aqui.
A livreira desconhecida já tem o cheiro dos livros tristes na pele.
E o coração, como é feito de papel, não pode deixar de bater. 

domingo, 18 de setembro de 2011

And how the wind knocked you down Put on your spurs, swagger around

Kjell Askildsen


"O mundo já não é o que era. Por exemplo, agora vive-se mais tempo. Eu tenho uns bons oitenta e muitos anos e ainda não basta. Estou demasiado saudável, embora não tenha grandes razões para estar saudável. Mas a vida não me larga. Aquele que não tem nada por que viver, nada tem por que morrer. Talvez seja por isso. 
Um dia, há muito tempo, antes de as minhas pernas se terem tornado demasiado fracas, fui a casa do meu irmão. Não o via há mais de três anos, mas ele continuava a viver no mesmo sítio onde nos encontráramos da última vez. "Estás vivo", disse ele, embora fosse mais velho do que eu. Eu tinha levado um farnel, e ele deu-me um copo de água. "A vida é dura", disse ele, "é insustentável". Continuei a comer sem responder. Não tinha ido lá para discutir. Por isso, acabei de comer e bebi a água. Ele sentou-se e fixou o olhar num ponto acima da minha cabeça. Se me tivesse levantado e ele não desviasse o olhar, teria olhado directamente para mim. Mas provavelmente teria desviado os olhos. Ele não gostava de minha companhia. Ou para ser mais preciso, não gostava de se ver a si mesmo na minha companhia. Creio que tinha má consciência, pelo menos boa não era. Ele escreveu uma vintena de romances volumosos, e eu apenas uns quantos e pequenos. Ele é considerado um bom escritor, ainda que um pouco obsceno. Escreve imenso sobre o amor, sobretudo o amor físico, seja lá onde for que aprendeu sobre o assunto.
Continuou a olhar fixamente para o tal ponto sobre a minha cabeça, pensado talvez que tinha toda a liberdade para o fazer, refastelado de rabo inchado com os seus vinte romances, e quase senti vomtade de me ir embora sem cumprir o propósito da minha visita, mas, depois de uma viagem tão longa, parecia algo absurdo e, por isso, sugeri que jogássemos uma partida de xadrez."

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Miguel Cardoso

Do Início, outra vez


I


Foi esta portanto a furtiva impureza que herdámos
sem saber como, este espaço, este canto assim vago,
estes espasmos desmaiados, este tempo, este mundo,
estas arestas, estes pedaços de terra, estes dramas
de inércia e dentes pouco aguçados, os mesmos
rostos rasos ao chão, estes remorsos, estes cafés
onde nos recompomos das derrotas, este modo
de despejar só cinzeiros, estas tardes, este aclarar
da garganta para nada e os rebuçados amarelos
e doces para a tosse, a lucidez, os oscilantes sons
das campainhas, a satisfação ardente dos líquidos
raros, a gradação de intensidade das lâmpadas,
a acidez dos risos, os envelopes bem dobrados,
e os dias sempre os dias outra vez os dias.


* Mariposa Azual Editora

So to the library With your new card Grab your favorite books

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

MAV


As horas

    Um homem que caminha é agarrado pelo braço. Detém-se e atenta em quem o agarrou.
    - As horas.
    Espreita o relógio.
    - Sete e meia. 
    O outro, ainda com a mão a envolver-lhe o braço, esboça um sorriso.
   - Vejo que não me estou a fazer entender.
   - Perguntou-me as horas. Como lhe disse, são sete e meia.
   - Não - diz, abanando a cabeça. - Apenas disse «as horas».
   O homem mantém-se calado por momentos. Entretanto, o braço começa a doer-lhe.
   - Por que me agarra assim? 
   - Não faça perguntas. Limite-se a responder.
   O outro faz que sim com a cabeça.
   - Óptimo. Diga-me então as horas.
   Não sabe o que dizer. Apenas conhece as horas do relógio, de modo que se fixa no homem com um olhar perdido.
    - Diga-me as horas - insiste, cerrando os dentes e apertando o braço com mais força.
    Permanece imóvel, sente medo.
    - Que horas, senhor? 
   Subitamente, o homem que o agarra leva a mão esquerda ao interior do casaco e de lá saca um revólver. 
    - As horas que lhe restam. 
   O outro estremece e recua um passo. Fita o revólver de olhos esbugalhados.
    - Ouça, não me faça mal. Eu...
   - Chiu - interrompe. - Fiz-lhe uma pergunta simples: as horas.
    Tomado por um pânico intenso, na sua cabeça desfilam todas as palavras possíveis. Todavia, a velocidade é tal que não tem como segurá-las.
    - Todas as horas até morrer - responde por fim.
    Terminada a frase, o outro solta-lhe o braço e guarda o revólver.
    - Muito bem - diz, dando-lhe uma palmadinha no ombro com expressão sorridente. Acena com a cabeça, vira costas e, enquanto se afasta, acrescenta: - É sempre bom arranjar um amigo, alguém a quem possamos voltar quando precisarmos. 

"roubado" Aqui

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Tuve que quemarme Pa’llegar hasta tu lado

Dino Buzzati


A Noite


"O medo vem, sem precisar de nada, com o nascer de certos seres imprevisíveis, reunindo-se primeiramente ao longo das sebes, nos valados já escuros, junto dos velhos muretes desmoronados. E atrás das igrejas solitárias, não? E naquele relvado junto à abside onde nunca passa ninguém? Contudo, ao fim da tarde poder-se-ia reconhecê-lo, aqui e ali, pois aproximava-se: por exemplo, naqueles longos chamamentos que, do outro lado do rio, duas pessoas trocaram a uma distância muito grande, através dos campos; por exemplo, no aluimento amarelado, naqueles pequenos buracos incompreensíveis que eram já abertamente um antegosto da noite; ou na sensação repentina de que também este era um dia perdido (e talvez a própria vida?). Sentado no jardim, ele até vira um cão fugir precipitadamente pelos pastos desertos, lá em cima, no alto: o animal estava sozinho e a certa altura perdera-se na extrema distância, confundindo-se com a verdura imóvel. (Mas ninguém o havia pensado, porque era um dia de sol, claro e cálido, propício aos projectos e aos amores, que fazia esquecer o resto. Era, infelizmente, a última tarde boa, mas não o sabíamos.)
Mas depois viera o grande e justo silêncio dos campos, aquietaram-se as aves, as vespas, todos os insectos, só o rio distante permanecia com a sua voz melancólica. Também os últimos sinos de tinham cansado, os fumos das casas no meio das árvores iam-se confundindo com a sombra, e no coração havia recordações, uma doce tristeza, ilusões."

Rui Pires Cabral (2)

"Do coração da noite vinham apelos e silêncios."


As cidades doem, estão dentro de nós
mantidas por laços de fumo e desejo,
têm muros úteis e portas escondidas
que dão para a noite, como certos livros,
e há amores que vivem a horas tardias


e outros que se cortam no fio da trama
queimam paus de incenso para abrir
caminhos, remover obstáculos, há curvas
e arcos, ecos desolados, quartos de ninguém.
As cidades cansam, estão nos nossos


dias, têm mil janelas de azul vitral
que nunca sossegam e nunca terminam
e há corpos que ensinam a temer a morte,
sombras que circulam nas redes do escuro
e homens que ferem para não chorar."

Desassossego (3)

 Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento - tudo que não fosse a vida... E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
     Durmo e desdurmo.

Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

(Just Feel)

Herberto Helder (2)

O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. 
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. 

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte. 

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte. 

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva. 

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura. 

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos. 

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua. 

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes. 

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue. 

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras. 

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo. 

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Al Berto (3)

Doze Moradas De Silêncio  
          1978/79

1


"penso na morte
mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores
no abdómen ensanguentado doutros-corpos-meus
na concha húmida da tua boca em cima dos números mágicos
anunciando o ciclo das águas e o estado do tempo


a memória dos dias resiste no olhar dum retrato
continuo só
e sinto o peso do sorriso que não me cabe no rosto
improviso um voo de alma sem rumo mas nada me consola


é imprevista a meteorologia das paixões 
pássaros minerais afastam-se suspensos
vislumbro um corpo de chuva cintilando na areia


até que tudo se perde na sombra da noite... além
junto à salgada pele de longínquos ventos"

560 (10)

Possidónio Cachapa


"Malfadado calor que me amolecia a vontade e me deixava angustiado à espera do tempo que não passava. A perna partida e a mulher na cidade não ajudavam à festa. Ali estava eu, com quilómetros de terra entre mim e o mundo a ouvir a conversa dos meu parentes. Ela, vestida de chita às flores miudinhas e azuis. Ele, de negro, o chapéu à banda na cabeleira suada. A coisa típica, dizer mais para quê? A comichão do gesso a meter-me formigas na epiderme. E as ditas a correrem, desordeiras, entre as frinchas do muro caiado. O branco a queimar-nos os olhos, a todos. Nem a visão das ervas ressequidas me matava esta sede de verde, que o Alentejo faz. Só as videiras resistiam, por cima do pequeno corredor aberto, em jeito de telheiro, na frente dos quartos. Ou nas alturas do tanque, escrupulosamente limpo, onde os nabos e as verduras da horta mergulhavam na sua forma de alimentos. 
Sol a queimar e a gente entediada a ver o que nada tinha para ver."

domingo, 11 de setembro de 2011

Philip Roth (2)


"Aqui cessa a memória. Doses consecutivas de morfina injectadas no braço tinham mergulhado o Soldado Messner num estado prolongado da mais profunda inconsciência, embora sem lhe suprimir os processos mentais. Desde pouco depois da meia-noite, tudo nele jazia no limbo menos a mente. Antes do momento da cessação, do momento em que deixava de ter salvação e de poder recordar, a série de doses de morfina tinha-lhe de facto impregnado o reservatório do cérebro como se de combustível mnemónico se tratasse, ao mesmo tempo que amortecia a dor das feridas de baioneta que por pouco não lhe tinham arracando uma perna e reduzido a pequenos pedaços os intestinos e os órgãos genitais. As trincheiras de montanha em que tinham vivido durante uma semana protegidos por um bocado de arame farpado numa encosta pedregosa da região central da Coreia tinham sido atacados durante a noite pelos chineses e havia corpos despedaçados por todo o lado. Quando a espingarda automática encravou foi o fim dele e de Brunson, o seu parceiro - já não se via rodeado de tanto sangue desde os seus tempos de rapaz no matadouro, quando assistia ao abate ritual de animais segundo a lei judaica. E a lâmina de aço que o retalhou era tão afiada e eficiente como as facas que se usavam no talho para cortar e amanhar a carne para as freguesas."

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Cormac McCarthy (2)


"Os jovens de agora parece que têm dificuldade em crescer. Não sei porquê. Se calhar as pessoas só crescem ao ritmo a que são obrigadas. Um primo meu, com dezoito anos, já tinhas as insígnias de auxiliar do xerife. Era casado e tinha um filho. Tive um amigo de infância que, com a mesma idade, já tinha sido ordenado sacerdote baptista. Era pastor de uma igrejinha rural, muito antiga. Ao fim de uns três anos foi transferido para Lubbock e, quando disse às pessoas que se ia embora, elas desataram a chorar, ali sentadas nos bancos da igreja. Homens e mulheres todos em lágrimas. Tinha celebrado casamentos, baptizados, funerais. Com vinte e um anos, talvez vinte e dois. Quando pregava os seu sermões, a assistência era tanta que havia gente de pé no adro a ouvir.Fiquei espantado. Na escola ele era sempre tão calado. Eu tinha vinte e um anos quando fui para a tropa e era um dos mais velhos do meu pelotão lá na recruta. Seis meses depois estava em França, a matar pessoas com uma espingarda." 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

João Ricardo Lopes (2)


pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco
coisas ao calhas, despejadas pelo
tempo na superfície da pele

sem nome é o cheiro do
silêncio, como o rosto que nos
pertencia e hoje não passa de
gelo, talhado a esmo
nas frestas da memória

minguante a lua. como
escapar-lhe, pergunto, neste
derruir de latas?



"roubado" aqui

Giani Stuparich


"O mar agora não tinha confins, e cada faceta da sua superfície cintilava. A toda a volta, o horizonte esbatia-se numa bruma ténue. À esquerda, mais do que distinguir-se, podia imaginar-se um pálido recorte de perfis montanhosos; talvez fossem nuvens. Quase todos os passageiros dormitavam nas cadeiras de repouso. Sobre a brisa da navegação calava o meio-dia marítimo, aquele bem estar indizível, aquela sensação de voluptuosa angústia que faz cada um preferir estar só, sem falar, à escuta dos seus tumultos interiores.
Mas surgiu à vista o arquipélago montanhoso: um azul denso da massas cristalinas ao fundo do azul líquido. Com surpresa, os passageiros viram-se perto de terra. O barco corria velozmente; ouvia-se, como se ampliado pelo eco, o leve arquejar das hélices. A sóbria vegetação ao longo das costas rochosas e os alvos povoados à flor da água davam um quê de frescura e de encantamento àquela terra que emergia do mar.
Muitos passageiros, animados por aquela feliz atmosfera de chegada, tinham-se levantado.
Quando a embarcação entrou na enseada, aglomeraram-se nos peitoris, curiosos; de repente, pareceu que se navegava num lago, e olhando para trás já não se percebia por que lado se entrara. 
Reinava uma calma absoluta; tinha-se a impressão de que o navio se tornara subitamente mais leve e que mal tocava a água.
Os traços da ilha eram suaves a toda a volta."

Oh bones, starved of flesh Surround your aching heart

Desassossego (2)

O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito. Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me encosto como a tudo. Procuro em mim que sensações são as que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente luminosa que [se] destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das janelas abertas. E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou.
Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos meus olhos sem sensação, o traje de alegria natural de que usa nos acasos prolongados de todos os dias. Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste. E o que em mim verifica isto está por detrás de mim, como que se debruça sobre o meu encostado à janela, e, por sobre os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos mais íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada já, que filigrana de movimento o ar pardo e mau.
Abandonar todos os deveres, ainda os que nos não exigem, repudiar todos os lares, ainda os que não foram nossos, viver do impreciso e do vestígio, entre grandes púrpuras de loucura, e rendas falsas de majestades sonhadas... Ser qualquer coisa que não sinta o pesar de chuva externa, nem a mágoa da vacuidade íntima... Errar sem alma nem pensamento, sensação sem si-mesma, por estrada contornando montanhas, por vales sumidos entre encostas íngremes, longínquo, imerso e fatal...
Perder-se entre paisagens como quadros. Não-ser a longe e cores...
Um sopro leve de vento, que por detrás da janela não sinto, rasga em desnivelamentos aéreos a queda rectilínea da chuva. Clareia qualquer parte do céu que não vejo. Noto-o porque, por detrás dos vidros meio-limpos da janela fronteira, já vejo vagamente o calendário na parede lá dentro, que até agora não via.
Esqueço. Não vejo, sem pensar.
Cessa a chuva, e dela fica, um momento, uma poalha de diamantes mínimos, como se, no alto, qualquer coisa como uma grande toalha se sacudisse azulmente dessas migalhinhas. Sente-se que parte do céu está já aberta. Vê-se, através da janela fronteira, o calendário mais nitidamente. Tem uma cara de mulher, e o resto é fácil porque o reconheço, e a pasta dentífrica é a mais conhecida de todas.
  Mas em que pensava eu antes de me perder a ver? Não sei. Vontade? Esforço? Vida? Com um grande avanço de luz sente-se que o céu é já quase todo azul. Mas não há sossego - ah, nem o haverá nunca! - no fundo do meu coração, poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância fechada a pó no sótão da casa alheia. Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter...


Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Don't forget me

Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (16)

Cliente: Estou com uma dúvida?
Eu: Posso ajudar?
Cliente: Sabe eu queria oferecer um livro à minha namorada, mas não sei se lhe ofereça este novo da Margarida Rebelo Pinto ou este clássico do Flaubert, Madame Bovary.
Eu: Madame Bovary é sem alguma dúvida a melhor escolha. 
Cliente: Eu sei... mas é que se oferecer este ela não o vai ler, e, assim, posso ler eu. Se for o da Margarida ela lê e eu não.
Eu: Mas então procura um livro para si ou para a sua namorada?
Cliente: Já nem sei... 

Stendhal


Do Orgulho Feminino 


"As mulheres passam a vida a ouvir os homens falarem de assuntos pretensamente importantes: grandes lucros de dinheiro, vitórias na guerra, pessoas mortas em duelo, vinganças atrozes ou admiráveis, etc. As mais altivas sentem que, não podendo dedicar-se a estes assuntos, não têm possibilidade de demonstrar um orgulho que é notável, pela importância das coisas em que este se apoia. Sentem palpitar no peito um coração que, pela força e pela firmeza dos seus movimentos, é superior a tudo o que as rodeia, e, contudo, vêem que até os homens mais insignificantes são mais considerados do que elas. Apercebem-se de que só se podem orgulhar de pequenas coisas, ou, pelo menos, de coisas que só são importantes pelo sentimento e de que um terceiro não pode ser juiz. Atormentadas por este contraste desolador, entre a sua pouca sorte e o orgulho das suas almas, tentam fazer com que o seu orgulho seja respeitável através da vivacidade dos seus arrebatamentos ou pela implacável tenacidade com que mantêm as suas decisões. Antes de chegarem à intimidade, estas mulheres imaginam que os seus amantes montam um cerco contra elas. A sua imaginação é usada para se irritarem com procedimentos que, no fim de contas, não são mais do que uma prova de amor, porque eles amam. Em vez de fruírem dos sentimentos do homem escolhido, as mulheres sentem a vaidade ameaçada: e finalmente, com a alma bem enternecida, quando a sensibilidade ainda não se fixou num único objecto, só têm vaidade. Mas, a partir do momento em que começam a amar, agem como uma coquete vulgar e deixam de ter vaidade." 

terça-feira, 6 de setembro de 2011

José Mateos


"Perdura em algum lado esse outro mundo
que se entrevê na quietez do tempo?
E na árvore vive o sol de outono?
E as suas folhas que dão calma e sombra
ao que se senta a amar, a ler a vida?
No vazio que espremes, dura o ar,
como duram e dentro de nós morrem,
de nós que estamos vivos, nossos mortos?


Se esta tarde se vai porque regressa,
se não acaba nunca de ir a água
do rio em sombra pelos brancos alámos,
se vês ainda a estrela que morreu,
se passa o vento e vira em cada esquina,
apaga marcas e desperta odores
que são versos, lugares e são imagens,


a criança que emerge do olvido
a sorrir-te na redoma de um sonho,
a noite a bordo de uma notas mágicas
ou, no espelho que não turva o sopro,
os rostos que tiveste, resumidos
no teu último rosto, serão só
data e mármore, lágrimas, ferrugem?
Perder-se-ão contigo essas lembranças?


Onde que morre e nasce na que vem;
pedra que sob o mar tranquilo espera
surgir um dia reluzente e outra;
esquecido jardim que, de repente,
aparece na névoa; e no quarto
do hospital, onde o doente sua,
vento fresco da alba. Ao olhares,
a onde olhares, são presenças, corpos,
que tendo sido rios caudalosos,
vão já para o seu fim ou são semente
dum próximo Abril? O que contemplas
em cada coisa, agora que é vida
branca toalha, cova muda, carta
sem resposta, é morte ou outra vida
diversa desta contenda e tempo?"