Jorge Roque (2)
Criança triste
"Que noite tão escura devorou os teus olhos? Que sombra projectas que os dias te estranham? Que caminhos te restam sob esta luz? Olhas em volta, tentas repetir os gestos com que outros fazem a vida. Mas nas tuas mãos esses gestos são sempre ocos, nada predem, nada deslocam, apenas o vazio cresce no buraco cada vez mais largo do peito. Só que parar também não é solução. Privado de movimento o vazio torna-se peso e oprime ainda mais. É preciso assim continuar, mover as pernas sobre terra igual e nada buscar. Outrora conseguias fazê-lo como forma de exercício. Com o tempo até o exercício se cansou, pois mesmo ele supunha um propósito que o vazio apagou. Olha-te no espelho dos teus olhos gastos: há muito que perdeste as lágrimas, sustenta-te agora de um fio de voz, linha frágil que te separa da noite total onde a dor é apenas escuro esmagado e a esperança boca separada do ar. Olha-te de frente: o que chamavas vida acabou, esse que te olha nada tem a dizer-lhe. Repara: tem o olhar fixo dos mortos, não é o infinito ou o vazio que fita, é o próprio olho objecto absoluto. Não sei se viste. Não sei sequer se era de mim que falavas. Sei que as tuas mãos pararam um momento sobre a conversa e tu disseste: é assustador porque és uma criança triste, nenhuma palavra te pode alcançar. Assim dito, como negá-lo? Sou de facto uma criança triste que deixou na infância a parte do sorriso que precisava para poder iluminar a alegria. A dor foi sempre maior que a vida, tanto que passei a vida a matar-me para nela me reconhecer. Algures devo ter morrido, assim me habituei a entendê-lo, renascer implicaria voltar atrás e conhecer essa morte, desenterrar o rosto que o negro cobriu. Mas são anos e anos de terra pisada, camadas e camadas de negro cumulado, removê-lo demoraria mais do que a vida e ainda que uma vida bastasse, haveria todo o negro entretanto. Tarde demais ambos sabemos, e eu só posso dizer-te: sim, sou essa criança triste. Faz-me uma carícia ao de leve, diz-me palavras em voz serena. Deixa que os meus olhos se fechem, deixa que o negro se esqueça. Depois sai e fecha a porta sem ruído."
in
Broto Sofro, Averno
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