domingo, 18 de setembro de 2011

Kjell Askildsen


"O mundo já não é o que era. Por exemplo, agora vive-se mais tempo. Eu tenho uns bons oitenta e muitos anos e ainda não basta. Estou demasiado saudável, embora não tenha grandes razões para estar saudável. Mas a vida não me larga. Aquele que não tem nada por que viver, nada tem por que morrer. Talvez seja por isso. 
Um dia, há muito tempo, antes de as minhas pernas se terem tornado demasiado fracas, fui a casa do meu irmão. Não o via há mais de três anos, mas ele continuava a viver no mesmo sítio onde nos encontráramos da última vez. "Estás vivo", disse ele, embora fosse mais velho do que eu. Eu tinha levado um farnel, e ele deu-me um copo de água. "A vida é dura", disse ele, "é insustentável". Continuei a comer sem responder. Não tinha ido lá para discutir. Por isso, acabei de comer e bebi a água. Ele sentou-se e fixou o olhar num ponto acima da minha cabeça. Se me tivesse levantado e ele não desviasse o olhar, teria olhado directamente para mim. Mas provavelmente teria desviado os olhos. Ele não gostava de minha companhia. Ou para ser mais preciso, não gostava de se ver a si mesmo na minha companhia. Creio que tinha má consciência, pelo menos boa não era. Ele escreveu uma vintena de romances volumosos, e eu apenas uns quantos e pequenos. Ele é considerado um bom escritor, ainda que um pouco obsceno. Escreve imenso sobre o amor, sobretudo o amor físico, seja lá onde for que aprendeu sobre o assunto.
Continuou a olhar fixamente para o tal ponto sobre a minha cabeça, pensado talvez que tinha toda a liberdade para o fazer, refastelado de rabo inchado com os seus vinte romances, e quase senti vomtade de me ir embora sem cumprir o propósito da minha visita, mas, depois de uma viagem tão longa, parecia algo absurdo e, por isso, sugeri que jogássemos uma partida de xadrez."

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