sábado, 29 de dezembro de 2012

Renata Correia Botelho (6)

O Sorriso do Mimo

"Tirou então o creme e olhou em frente.

Depois do trapézio, a vida concedera-lhe
palavras poucas, um espelho,
uma mala gasta onde arrumar as dores.

Primeiro cobriu a testa, da esquerda
para a direita, com a mestria de um cego
que tacteia o seu nome no escuro.
Os olhos e os lábios em seguida,
até nada restar de voo sobre a pele.

O céu poente abrigava um bater de asas,
cortando de penas aquele silêncio crepuscular.

E nós assistimos, sem rede,
ao sorriso primeiro do mimo."

in Revista Grisu nº1

so many dust...


Poesia, Poesia, Poesia... (2)


Nocturno com Aviões
                        para o Miguel Martins


"Não estejas só. Tu também és
o que já foste e o que esperaste
vir a ser. A manhã que se aproxima

há-de passar, não importa. Para já,
os diligentes aviões de madrugada
sobrevoam o desenho das colinas

de Lisboa - e cá dentro, muito fundo,
numa redoma de música, os amigos
ainda bebem para esquecer

o futuro, que outro remédio
não têm, se a hora não se repete
e a vida é só esta espuma."

Rui Pires Cabral


Quinta da Regaleira

"Por amor, pode-se. Ou quando
se traz no bolso do casaco
um envelope lilás dirigido
a um amigo que não queremos perder.

Por amor - ou por amizade - 
pode-se, enfim, descer pela
primeira vez o Poço Iniciático,
sofrer em pleno dia a noite
dos túneis que nos devolverão à luz;
esse chão pisado por americanos
nédios e europeus sem graça.

Mas dispensem-me de razões
e argumentos.O medo foi
o que de mais precioso tive esta manhã.
Ou durante toda a vida."

Manuel de Freitas


A Queda


"Je suis tombée
amoureuse, foi o seu 
primeiro encontro
com o chão.

Dessa vez partiu
em cacos o coração.
Os ossos só mais tarde,
um por um,
contra a terra.

C'est fou la vie,
essa derrocada
a que apenas resistem
memória e pássaro,
em voo picado."

Renata Correia Botelho


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Poesia, Poesia, Poesia...



"Nada procuro
senão o sítio

onde atrasar o poema
e aquela sombra sem culpa

de quem leva ao coração
toda a luz que a mão espalha."

José Carlos Soares


"Há um fio branco
com que a luz me prende
ainda à minha sombra.

Rostos sem nome, lugares
arrancados à morte,
manhãs inquietas - de tudo

vi ser salvo, sob o jugo
dos teus dedos, às supremas 
leis do tempo

por um estalido seco
de uma máquina dolorosamente
rente à verdade.

A memória demora-se
um pouco mais nos meus
olhos, devolvendo-me

a esta fotografia gasta
onde, à tua esquerda, sou
a mais ditosa das sombras

à espera de um sopro de sol.
como aquela roupa estendida
ao fundo do pátio."

Renata Correia Botelho


1.
"Se algum dia podias supor
No regresso a casa
Ou no bulício do trabalho
Que eu deste lado
Onde os anos idos se acoitam
Tocaria o teu ombro anónimo

Como no fundo dos rios"

João Almeida


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Alfonso Barrocal


"Às vezes paro à porta
com o olhar perdido e habituado ao silêncio,
há mais desertos ainda, dias
e morte noutros olhos.
Com a garganta habituada à sede,
com os pés às feridas,
saio para a rua
e já não há umbrais.

Ando um dia, passo outro,
acabo uma semana de vidros partidos
e tosse mais velha.
Hoje parece que sempre
choveu sobre mim,
e não me importa
se a chuva já não se parece ao esquecimento
e apenas deixa charcos, paredes mais sujas
e fuligem e tristeza nos olhos de rímel,
ainda tenho sede
e não me importa
voltar às coisas más e aos velhos tugúrios
à procura de algo que não encontro nem recordo,
que costuma principiar por um encontro,
talvez por outra palavra
e corre o perigo de crispar-se
até à forma da folha da faca.

Às vezes tudo é tão estranho
que não basta continuar a andar."


in Poesia Espanhola, anos 90, Relógio D´Água

*to J. thanks :)

Just forget about mine


F.S. Hill (4)


"Tenho os frutos cristalizados
na boca,
já me podes lamber os medos.
Entretanto,
escrevi, no embaciado espelho
retrovisor,
uma lista dos dias em que me esqueci
de viver.
Apaga-me se puderes,
quando chegares.
Gosto que venhas,
como gosto da chuva
e do arroz.
Às vezes limito-me a pensar-te.
Também não é mau
mas prefiro quando dançamos."

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Al Berto (15)

"regressei com a água das grandes catástrofes, quebrei portas de cidades
muradas. habitei no vento das pestes nocturnas, corri pelo coração das pedras
luminescentes e sonhei, inundei o olhar das estátuas com florescências de 
sangue e desapareci ao amanhecer.
fiquei deitado, talvez doente, junto à lareira. o lodo espesso da febre agarrado
ao peito. escrevi sem parar e nunca mais falei dele, nem mesmo quando os pássaros
cantaram ao confundirem a luz da lâmpada com a claridade limpa da alba.
lembro-me que era quase sempre noite. esperei que a maré cerzisse o sal
aos punhos acordados daquele que escreve e regressei. a noite persistia na
superfície dos espelhos, limpava definitivamente o fingimento das palavras.
hoje, muito pouco resta das casas caiadas de fresco. possuímos pouca
coisa, o indispensável para a travessia do deserto.
a espera, a espera de mim mesmo acabara. estou agora vivo na escrita que
me define, me evoca, e me esquece, mas soaria a falso o que tenho a dizer
sobre a morte, calo-me..."

in O Medo, Assírio & Alvim

José Tolentino Mendonça (6)

Grafito

"O poema pode conter:
coisas certas, coisas incorrectas, venenos para
manter fora do alcance
excursões campestres, falhas de memória
uma bicicleta caída junto às primeiras paixões
sombrias
Pode conter Le matin, Le midi, Le soir
audácias típicas de um visionário
uma guerra civil
um disco dos Smiths
correntes marítimas em vez de correntes literárias"

in O Viajante Sem Sono, Assírio & Alvim 

*to J.

Clouds seem to melt away


Nuno Júdice (10)

Poema

"Escrevo na linha dupla das estações:
o outono, o inverno; e ainda
a primavera, ou o verão - quando
o azul cai, ao fim da tarde,
ou não chega a nascer
das grandes névoas matinais.

Sei que, no fundo do poema,
um sentimento se arrasta;
e coincide com o tempo
que o inspirou, com esse lodo
de emoções que se juntou
na alma, submergindo na sua
monotonia o impulso divino.

Não perco tempo a ver
as árvores, os arbustos que se
enchem de flor com o primeiro
sol, ou as pedras molhadas como
dorsos de antigos animais. Volto
para mim próprio como quem
regressa de viagem; e não 
estava à minha espera,

intruso, visita
indesejável na minha vida."

in Poesia Reunida, Dom Quixote 

Renata Correia Botelho (5)


"foi então nessa noite
que amanhecemos, a nossa
nudez delatada pela cotovia

e a janela a abrir-se
para os primeiros ventos.

vem, meu amor, traz contigo lilases.
segue as pistas que te deixei
entre as pedras da memória.

vem guardar-nos do inverno"

in Um Circo no Nevoeiro, Averno

José Amaro Dionísio

Final

"Sente o coração bater contra o rio onde o rio já não existe. Que pode
fazer um homem que desloca a fronteira nos seus passos? São sons
que provocam corredores sem saída, e batem no ar, e roem, e voltam
para trás, e recomeçam, e por cima há um odor a cadáver no céu
em ruínas. Sim, nem de outrora um pouco de vida. É um esplendor
de luto, ponto final. E isso paga-se todos os dias, mesmo quando o
dia todo se gasta a fugir disso. Pelo caminho taberna a taberna há 
sempre uma toalha ferida pelo exílio, e a proximidade das vozes só
serve para esconder a manhã inútil."

in Telhados de Vidro nº9, Averno

Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (31)

(a minha alma ainda está parva)

Cliente: Tem As palavras que nunca te direi do Almeida Garrett?
Eu: (... !!!??? como? o quê? wtf? o_O) Peço desculpa, não se importa de repetir?

A sudden sense of liberty


Tiago Araújo (6)

2.
"nos dias gelados e limpos os crepúsculos têm sido perigosos: abaixo
do horizonte tudo o que tem volume funde-se numa massa negra que
avança sobre o rio; na parte de cima a luz ganha mais cor antes de se
escapar para o espaço. o que há de sólido em nós também se torna
mais escuro com um desejo individual de extinção sem ruído no vácuo
de uma beleza indiferente aos nossos erros à nossa possível culpa ao
prazo de validade das relações humanas ao encanto quebrado pelo
foco de um candeeiro público a iluminar a face minguante do corpo a
metade que se opõe à metade do rosto que escurece."

in Telhados de Vidro nº9, Averno

Per Aage Brandt


"uma sombra sem peso desliza por uma parede,
nada a pode parar, como ninguém pode
impedir um nome ou um canto ou uma ausência
ou um contorno ou o teu rosto de existir"

in Livro da Noite, Quetzal

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

I never can sleep


*To J. ;)

Rui Miguel Ribeiro (3)


XIX - A Janela

"Rumor completo e impresso,
a morte ou a plenitude,
o mundo está além de uma fronteira.
Regressar? É essa a meta que se impõe? 
A cidade enche-se de noite
e a janela de onde olho torna-se
um ecrã que me deixa ver
os seus movimentos mais longínquos,
pequenas luzes, intermitências
de electricidade e betão sob
as formas regulares. Provas de vida
onde também me encontro.

Hoje ganhei uma nova data de aniversário"

in XX Dias, Averno

domingo, 16 de dezembro de 2012

Your chapters end so well


*to S.

José Angel Valente


El adiós

"Entró y se inclinó hasta besarla
porque de ella recibía la fuerza.

(La mujer lo miraba sin respuesta.)

Había un espejo humedecido
que imitaba la vida vagamente.
Se apretó la corbata,
el corazón,
sorbió un café desvanecido y turbio,
explicó sus proyectos
para hoy,
sus sueños para ayer y sus deseos
para nunca jamás.

(Ella lo contemplaba silenciosa.)

Habló de nuevo. Recordó la lucha
de tantos días y el amor
pasado. La vida es algo inesperado,
dijo. (Más frágiles que nunca las palabras.
Al fin calló con el silencio de ella,
se acercó hasta sus labios
y lloró simplemente sobre aquellos
labios ya para siempre sin respuesta."

in  A modo de esperanza

Did I?


*to C. thanks:)

Carta

"esmago a mão contra o papel
as letras saem devagar;
soluçadas, as palavras.

não, eu queria escrever-te,
só não me lembro é
como se faz."

You wake up in the bed you make


Inês Dias

Anywhere out of the world

"No álbum, três rostos desviam-se 
na sua agonia de borboletas
trespassadas pela memória,
e a última fotografia deixou
o tempo corroer-lhe as entranhas
até restar apenas essa babugem 
de algas à beira-mar
quando a maré de retira.

Vi a mesma cova abrir-se
na Pederneira, ao passear
o sol e o vento às costas:
rosto abandonado num túmulo
já só de areia, sem palavras.
Todos os animais pressentem
a morte, mas só o homem
sabes antes do esquecimento.

Não conheço deserto mais frio."

in Nós os Desconhecidos, Averno

Rui Pires Cabral (7)

10 Versos


"Sim, estive nessa rua
à hora incerta, de costas
para os avisos da morte

que já então me cobiçava.
Fui pequeno, confiante
tive um chapéu de palha,

aprendi a tabuada. A noite
roubou-me a voz, a sorte
deu-me estes versos, 1x10

igual a nada."

in Nós os Desconhecidos, Averno 

sábado, 15 de dezembro de 2012

Al Berto (14)

Os Amigos

"no regresso encontrei aqueles 
que haviam estendido o sedento corpo 
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados 
lentamente 
moldavam o rosto lívido como um osso 
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência" 

in O Medo, Assírio e Alvim 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Is the crow flying eight miles high?


Carlos Bessa

Story Board

"Começa com o dia a story board
de sair de casa, chegar ao emprego,
ir depois comer qualquer coisa. A vida
toda entregue ao mercado negro,
ao tráfico das belas palavras, nas filas
de espera, nas paragens de autocarro,
de janela para janela do automóvel.
Sobretudo na pausa para o café.
A coleccionar os engarrafamentos
e os desastres da rotina,
de comentário em comentário,
porque mesmo contra nós o frio é
um poderoso aliado da memória.

Há maneiras e maneiras de levar
os alimentos à fonte, pensava,
na hora dos noticiários, enquanto
raspava os pratos e juntava os talheres.
A ordem não pode ser esta.
São muitos saltos. Talvez, hipnodependente,
seja uma insónia, uma lenda que
começa assim: sem fome. Talvez
seja um puzzle a que faltam peças
ou então é a ordem do dia-a-dia que
se torna absurda quando pensada.
Alguns preferem chamar-lhe poesia
mas sei que é prosa e da mais impura."

in Telhados de Vidro nº3, Averno

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Inês Dias e Diogo Vaz Pinto (5)

"Não tenho muito tempo, mas precisava de te falar. Não é pressa, é urgência. Só essa é que conta.
Se conseguirmos partir antes de mais um dia se instalar, talvez marquemos finalmente um
trilho novo, entre atalhos redescobertos, pontes feitas com pedras de outras pontes, montanhas
demolidas ou desertos cartografados de fresco.

Diz...

Sim, provavelmente também sofreremos perdas pelo caminho. Este ouviu o despertador e
acordou, aquele recebeu um prémio e parou para o contemplar, esse foi à procura de uma 
nova reedição ilustrada do mesmo mapa velho. Pequenas mortes. E, se lhe perguntarem, não
te conhecem, deixaram de te ver. Para eles, tu é que perdeste"

in Revista Cão Celeste

and i can see so far away i can see so clear


Jorge Roque (11)



"Músculos tensos, grito parado, a inquirição prossegue
por entre camadas de angústia cerrada. Fura, brita, escava,
alonga túneis por onde avança o corpo cerrado. Por vezes
tem a espessura de montanhas, muros sobre muros que
não acabam. Outras abre-se inesperadamente em naves
onde o eco é mais largo e o som ampliado vibra a ilusão da
interminável viagem. Uma a uma, as palavras emergem
da pedra informe, brilham contra o aço quente das brocas.
Agarra-as com as mãos feridas, confunde-as com o tacto,
mistura-as com o sangue, enquanto a tinta regista a negro
o seu traçado. Há quem lhe chame poesia. Eu só lhe posso
chamar combate.

-

"Agilidade técnica, destreza na rima, ouvido para o ritmo,
instinto harmónico - e a morte, Doutor, e a morte? Como
nas teclas os dedos do pianista, a posição exacta, momento,
peso, a ascensão e queda de cada nota, o seu trajecto contra
o silêncio que a revela - e a morte, Doutor, e a morte?
Conhecimento dos poetas de outras épocas, genealogia
da língua, amplitude e precisão do léxico - e a morte,
Doutor, e a morte? Domínio pleno do instrumento, no fundo
é disto que se trata, claridade da articulação, objectividade
expressiva, intensidade interior, saturação lírica - e a morte,
Doutor, e a morte?"

Luís Miguel Nava


Recônditas palavras

"Inquietam-me as dedadas
de deus rente à raiz da carne, ao indeciso
equilíbrio da alma
na balança, à cicatriz
azul do céu sobre o destino.

O mar pneumático, ao sabor
do qual contra os sentidos se nos fazem
e desfazem as ávidas lembranças,
assalta-me os sentidos, tenebrosas

crateras escavadas
no espírito e através
das quais, incandescentes, as imagens
do mundo sobre ele próprio se derramam

como uma lava espessa, esses sentidos
que, como aéreos
estigmas, nos imprimem
na carne a cicatriz do céu, a indecisa
maneira de as imagens

do mundo se guindarem
mais alto do que a alma ou o alento
de quem dentro de nós
aviva a sua chama. O que nos sai 
do coração vem a ferver.

A carne, ao rés 
da qual o céu se encurva, báscula 
que deus deixou nos arredores 
dum qualquer lugarejo

a encher-se de ferrugem, cicatriz
pesada, combustível, com raiz
nas mais profundas trevas, a carne âncora
submersa no destino, ergue-se a pique

de novo onde as lembranças
se fazem e desfazem
com todo o azul do céu
lá dentro a procurar rompê-Ia.

Sentados no convés, como se fosse
já noite e nos soubesse
o pão ao ranço da memória, contemplamos
os rudes marinheiros.

Depois que pela encosta procurámos
em vão uma escada de que o último
degrau fosse já dentro da memória,
suspenso na memória,

desfaz-se-nos dos ossos
a carne, com o seu quê de lírico e festivo,
em áreas portuárias onde o mar
nos sai do coração para galgar o molhe,

e, agora que começam
os anos a pesar
mais para trás que para a frente, acodem-nos
recônditas palavras aos ouvidos:

«Fecharam-se-te os olhos e eu fiquei de fora»,

«Nas tuas mãos começa o precipício»."

in Poesia Completa, Dom Quixote 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Confusões, tropeções e demais situações na vida de livreiro (30)

(de vez em quando até apetece beijar os clientes)

Cliente: Boa Noite! Tem o livro "A Sensibilidade de ter Bom Senso"?
Eu: (ohhh... que fofinho, apetece beijar e abraçar em vez de corrigir. Sorriso enorme, enorme...) Tenho sim, é só um momento!

:)

And I called you back, to a place beside me


*To A. 

José Ángel Valente


Aniversário

"Não compreenderás
para que é que voltei.
Talvez, aí deitada,
não compreendas
nada do que vive.
Voltei, apesar de tudo,
para falar-te outra vez.
(Está molhada
e limpa a colina.)
Ainda te vejo
com o rosto de sempre
e os cabelos, em seu reino
de fumo, algo encanecidos.
Não tenho olhos
para mais. Não és
talvez assim e é isso a morte.

Voltei para te falar.
Estou aqui. Não compreendes
nada. Esqueci-te
tanto e consegui
esquecer-te tão pouco.
Estou alegre: às vezes
não me recordo de ti
(também isso é a morte?).
Não sei se me compreendes,
nem sequer
se estás aqui ou deslizas
por um ar que nunca
pesou sobre a minha boca.

(A colina, apesar de tudo,
está quieta debaixo do céu
tal como dantes.)
Mas ouve-me se puderes.
Num dia como o de hoje
caiu a neve,
arrebatadora. Eu cumpro,
inutilmente, o rito. Mas não importa;
não podes compreender-me.
Tudo foi cortado."

*To J. (thanks)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Nuno Júdice (9)


Filosofia de Vida

"Não, não é talvez a vida o que
se põe entre mim e ti, talvez contra ambos,
mas de qualquer modo empurrando-nos
um para o outro. A vida é o que 
menos importa, neste caso, embora
não haja outras vidas, nem é provável
que as oportunidades se repitam
numa única vida. É a metafísica, a entoação
que se tem de dar às frases quando 
o ruído do vento nos toldos da esplanada
apaga o que se quer dizer. A metafísica
do que se perde: aí, o que nem tu
nem eu ouvimos do que não queríamos
dizer. «Ouve-me, então». digo-te, «o intervalo 
entre o amor e a paixão, ou aquilo que 
só a hesitação dos dedos pode explicar». Sim,
os dedos que se tocam, por acaso. e 
que poderiam substituir tantas palavras,
e até todo o esforço das nossas vidas. Porém,
demorei-me a acender o cigarro; e tu
mexias o café, no fim do almoço, quando
o vento batia com mais força, insistindo
em afastar-nos."

in Poesia Reunida, Dom Quixote 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Sun shine sun



*estes embalos na alma... To S. :)

Anuncio de Jornal (2)


"Perdeu-se:

Livreira; não sabe onde se esqueceu de si mesma.
É provável que tenha deixado partes por aqui e por ali.
Perdeu a alma a semana passada (esta com certeza só voltará quando a "casa" estiver unida), e com ela centenas de livros. A poesia que unia como cola os membros inferiores e superiores ficou gasta e talvez estes tenham caído em esquinas insuspeitas.
Eventualmente a cabeça ficou num banco de um café triste, perdida no meio de conversas sem fio de meada.
O coração ficou esquecido num táxi tardio, dado em troca de moedas que faltavam.
A roupa sendo apenas um adereço, sem corpo, deixou-se ficar pelo chão de ruas gastas.
Existe um ligeiro pressentimento que os olhos tenham ficado no alto de uma rocha a contemplar um céu sem luar.
O reconhecimento de qualquer pedaço da livreira é imediato, tem aspecto de papel amarelecido, já gasto do uso que dá no manuseio e na arte de amar letras e gentes.

A quem encontrar? Devolver toda e qualquer parte na seguinte morada: perto ou longe de lugar nenhum. "

MP

Just silence


Helder Moura Pereira (8)


"Preciso amar-te por isso digo fica esta
noite, depois os dias do nosso trabalho
farão luz sobre o tempo. Tenho na cabeça
a tempestade, tantas vezes recordo aquele
corpo que não sabia do prazer que me dava,
tantas vezes acordo e o seu nome quase 
me escapa dos lábios, reconheço as feridas,
os golpes todos, se lembro é porque quero
esquecer. Fica esta noite, mais outra, o
tempo que demora a cumprir a decisão de
amar-te. E vamos fazendo o curso dos dias
com algumas opiniões parecidas e ódios ás
coisas culpadas. A gente que diz coisas 
de silencio, os andaimes da cidade tapando
saídas, as horas certas quando dizemos
adeus. E que sentido têm estas lágrimas?
Eu vivo neste ano e já me esqueço de mim,
apenas vou precisar amar-te, depressa

Venho de distribuir tarefas e de ouvir ferro
contra ferro, o cheiro a tinta, barcos em
areia artificial, útil mentira que me conto.
Regresso à cidade de onde nunca soube partir,
pelo caminho passam aos olhos os lugares de
jogar á bola, ao berlinde, o quartel a que
conseguiram que fugisse. Regresso e não sei
se me esperam, alguma vez acreditei na
felicidade? Não voltarei a falhar, os pesadelos
que este corpo agita são meus também, as suas
palavras têm menos peso que o murmurio do 
prazer, vou dizer-lhe isto, deves acreditar,
trago mais um disco, vamos a outra exposição,
vamos dar as mãos junto ao mar. Não gosto
da tarefa de ajudar a esquecer, preciso tanto
amar-te, vou ajudar a esquecer."

domingo, 9 de dezembro de 2012

And smoke in my hair


João Ricardo Lopes (5)


JÁ SABES ONDE ME ENCONTRAR 

"já sabes onde me encontrar:
no sítio onde o génio e o imbecil trocam de posição e
às vezes pelejam, como dois garotos no recreio 

terei nas mãos os mesmos dedos, mais queimados pelo cigarro.
usarei o casaco elegante que me ofereceste, quando
não tinha outro 

prometo não dececionar-te:
repetirei a história de Tristão e Isolda de que tanto gostas, ou
a triste sina de algum novo compositor, ou
alguma coscuvilhice erudita entre as nove filhas de Mnemósine 

não me peças explicações nem me dês conselhos:
sempre detestei a verdade 

prefiro que abras as janelas para o sol entrar, ou
me tragas a quieta poesia de um ramo de malmequeres 

não sou ambicioso: sabes que nunca fui.
basta-me o amor sincero, a beleza de Bach e o teu corpo
no lugar  onde (por muitas fogueiras que ardam) jamais consegui
aquecer-me"

*"roubado" aqui

Diogo Vaz Pinto (4)

«O esperar de certos seres
      e de certas horas
que a sua juventude lhe seja devolvida»
  Julien Gracq, A costa das Sistes 

"Tive o tempo que quis e mais algum
para me tornar sério. Não fui por aí.
A família tinha a sua conta, e eu
sempre me fodi com números. Nunca
me deu para fechar linhas, ser firme,
ou manter a formação. Gosto de variar
a continência. Olhei muito em volta,
tudo piscava um olho. Não sei
governar-me, não sei com quantos
paus (...) nem sei fazer-me à vida,
antes faço que não é comigo. Mas sei
o que é amanhecer. Tenho colecções 
sem importância nenhuma, frágeis,
simples. O tinir da primeira luz
nos galhos, logo a gritaria dos pássaros
cavando a alvorada em roucas rajadas.
Uma aragem presa absorvendo
o aroma sumarento e entontecedor
de uns frutos caídos. A moleza e essa
sombra que me caiu às costas escorregando
de outro mundo"

in Bastardo, Averno

sábado, 8 de dezembro de 2012

I once was lost


Al Berto (13)

"por vezes consigo acordar
sacio a sede com a tua sombra para que nada me persiga
teço o casulo de cocaína escondo-me no mel da língua
lembro-me... fomos dois amigos e um cão sem nome
percorrendo a estelar noite doutros corpos

mas já me doem as veias quando te chamo

o coração oxigenado enjaulou a vontade de te amar
os dedos largaram profundas ausências sobre o rosto
e os dias são pequenas manchas de cor sem ninguém

ficou-me este corpo sem tempo fotografado à sombra da casa
onde a memória se quebra com os objectos e amarelece no papel
pouco ou nada me lembro de mim
em tempos escrevi um diário perdido numa mudança de casa
continuo a monologar com o medo a visão breve destes ossos
suspensos no fulcro da noite por um fio de sal

partir de novo seria tudo esquecer
mesmo a ave que de manhã vem dar asa à boca recente do sonho
mas decidi ficar aqui a olhar sem paixão o lixo dos espelhos
onde a vida e os barcos se cobrem de lodo


pernoito neste corpo magro espero a catástrofe
basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia
não... não voltarei a suicidar-me
pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade"

in O Medo, Assírio & Alvim 


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

The one that makes me laugh


Luís Quintais (2)


"És bela quando escondes
a tua tristeza
revelando-a de um golpe só,
como se um trovão
emudecesse a eufonia
do inverno.

Sem aviso,
feres a elegância do tempo,
o irremediável
de cada vida.

Contemplas o que me atinge,
a casa abandonada,
o fragor do que rejeitaste.

Entre os poros da luz
vejo o desenho da memória
que ensurdece, as mãos
aniquiladas de um estranho,
os irmãos adormecidos
na câmara vegetal do teu sono,
o que deixaste para trás
e dói no momento parado.

Abres o gesto, o tempo
desfila outra vez,
o portão cede, e só posso
imaginar o que de ti não volta"

in Verso Antigo, Cotovia

*to JC

Luís Quintais

A Invenção do Outono

"A débil linha, o que te prende
à escrita, a tinta sobre o papel,
o delta que os dias descrevem.
O que dirás ainda do outono?
Cada estação despede-se, é vê-la
fugir como se não quisesse voltar.
Da tua célebre memória, a de
elefante, haverias de roubar a cinza
do que balbucia no outono. Haverias
de roubar o seu perfil, a sua substância,
o que não esquece. Da tua célebre memória,
haverias de recuperar a cinza
sobre a árvore, a débil linha
que te prende."

in Verso Antigo, Cotovia