quarta-feira, 23 de maio de 2012

Rui Pires Cabral (3)

«We are flint and steel to each other.»

"Ontem choveu sem descanso
e fizemos tudo mal. São dias
de pedra e aço - alguém sabe
onde nos levam? Dão-nos
um amor volúvel que lisonjeia
os sentidos, mas não podem
consolar-nos da penúria
de existirmos, tu e eu, cada um
na sua pele, no seu áspero

lugar. E lembram-nos a todo
o instante do que já estava perdido
no escuro de uma gaveta
antes de ter começado,
como um verso interrompido
nas costas de um envelope
ou uma velha cassete
que mal chegamos a ouvir,
hora e meia de remorso

e distorção. Não te salvo,
não me salvas - nem é certo,
quando o medo se demora,
que haja ainda o que salvar.
Contra o frio que nos ronda,
resta o lume que ateamos
por ternura, desfastio
ou vontade de vingar
o dissabor de viver."

in Oráculos de Cabeceira, Averno

1 comentário:

  1. "Estou a amar-te como o frio
    corta os lábios.

    A arrancar a raiz
    ao mais diminuto dos rios.

    A inundar-te de facas,
    de saliva esperma lume.

    Estou a rodear de agulhas
    a boca mais vulnerável

    A marcar sobre os teus flancos
    o itinerário da espuma

    Assim é o amor: mortal e navegável."

    Eugénio de Andrade

    ResponderEliminar