quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Al Berto (6)

"esqueço-me de tudo, por isso escrevo, longe do terror ao sismo inesperado das estrelas,
escrevo com a certeza de que tudo o que escrevo se apagará do papel no momento da
minha morte.
o olhar fugiu pelos interstícios dos objectos, sinto-me como se tivesse cegado por excesso
de olhar o mundo. as palavras para nomear o que é belo definharam, raramente as escrevo,
penso-me só. aqui sentado, imobilizado pela luz amarelenta do candeeiro, continuo a desejar aquilo que nunca verei: a cintilização dum corpo na cal, o sorriso dum rosto ardendo de suicídio em suicídio.
ignoro o mundo e a noite que o envolve e devora. deixo escoar o cansaço do corpo pela janela do quarto. fecho os olhos, finjo o sono, e vou pelos lugares desabitados do meu corpo.
a noite cheira a musgo molhado e a bolor. excrementos de aves acumularam-se 
na palma das mãos, sujam aslinhas do destino e do coração. um pano de flanela resguarda da poeira
os poucos brinquedos que resistiram às mudanças de casa. a humidade manchou a memória.
levanto-me da cama, arrasto-me até à janela. o mar talvez se aviste dali. mas o mar só se torna nítido
quando sonho, não se consegue avistar da janela. volto a deitar-me.
o mar, o dos sonhos, depositou sal luminoso nos cantos da casa, formando desérticas paisagens
onde queimo os dedos, o tacto, vagarosamente. nos corredores já não é possível encontrar sinais de 
passsos nem de facas pelas paredes. silêncio, apenas o silêncio com gumes de luz atravessa o alicerce
ósseo da casa.
lá fora, os estames porosos dos hibiscos oferecem-se aos insectos, crescem como cabelos. o polén das acácias embriaga quem se aproxima da casa, ou quem ousa lavrar as incertezas da noite num lençol
sujo de insónias e de agonia. 
dentro e fora da casa, as sombras dos mortos esburacam a terra e os soalhos, colam-se aos corpos dos que permanecem aqui."

in O Medo

2 comentários: