"Contaram-me que as letras descansam de lado, nas páginas macias dos livros antigos.
Outros afirmam-me que os textos mudam ao sabor das edições, e que nenhuma se compara
à que se leu primeiro.
Há ainda quem me confidencie que recebe os livros de braços abertos, às vezes até com as pernas,
e dou por mim a olhar para as lombadas que me rodeiam, a senti-las latejar como um animal magnífico,
alheio a interpretações domésticas.
Sei que se estender a mão o irei acordar; prefiro entreter-me a escrever este texto,
onde as letras são ainda verticais e se estampam no papel, como uma mancha de tinta,
uma ave suicida, um eco sem som.
*
Também conheço um poeta exilado num condomínio de metáforas. Rodeou-se de palavras
que cultica em cadernos e guardanapos de papel, com a dedicação e a paciência de um
jardineiro cego.
Ninguém se atreve a dizer-lhe que nem as piteiras sobrevivem na aridez desse jardim meticulosamente
escrito, onde passa horas infindáveis a podar o vazio e a regar o silêncio que brota
das suas páginas inéditas.
E, no dia em que morrer, uma duna será tudo o que restará da sua obra, que o vento
e o tempo se encarregarão de aliviar do jugo das metáforas.
*
E conheço uma música frágil como a chuva ou as lágrimas evitadas. É uma música
que ouço muitas vezes enquanto escrevo ou leio, ou que ecoa dentro de mim enquanto
leio o que escrevi.
Cada vez que a ouço, que percorro o teclado infindável do piano onde me refugio,
esqueço-me do que escrevi e leio as lágrimas que não chorei sulcadas no meu rosto,
à espera que chovesse.
Que me lembre, é uma música onde tu não estás. Uma música que se calhar até nem existe, ou
não existe assim, e não passa de uma desajeitada desculpa para finalmente poder chorar."
in Telhados de Vidro nº11, Averno
Sem comentários:
Enviar um comentário